Artigo de Atualização

A importância das fantasias inconscientes para a relação mãe-bebê: Klein e atualidade

The importance of unconscious fantasies for the mother-baby relationship: Klein and today

La importancia de las fantasías inconscientes para la relación madre-bebé: Klein y la actualidad

1. Ester Duarte Galhardo
e-mail orcid Lattes

2. Fellipe Oliveira Melo
orcid Lattes

3. Olga Aparecida Angeli
orcid Lattes

Filiação dos autores:

[Médica, Faculdade de Medicina de Marília, FAMEMA, Marília, São Paulo, Brasil]

2 [Médico residente de psiquiatria, Faculdade de Medicina de Marília, FAMEMA, Marília, São Paulo, Brasil]; 3 [Docente, Faculdade de Medicina de Marília, FAMEMA, Marília, São Paulo, Brasil]

Editor-chefe responsável pelo artigo: Leonardo Baldaçara

Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: Galhardo ED, Melo FO, Angeli AO [1-3, 5-7, 10-14]

Conflito de interesses: declaram não haver

Fonte de financiamento: declaram não haver

Parecer CEP: não se aplica

Recebido em: 17/02/2024 | Aprovado em: 31/05/2024 | Publicado em: 31/07/2024

Como citar: Galhardo ED, Melo FO, Angeli OA. A importância das fantasias inconscientes para a relação mãe-bebê: Klein e atualidade. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024;14:1-17. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2024.v14.1176

Resumo

O texto busca trazer uma comparação entre a teoria de Melanie Klein acerca da relevância das fantasias inconscientes, como a representação mental das pulsões do lactente, para o vínculo mãe-bebê e uma temática atual. Dessa maneira, em um primeiro momento, apresenta um resumo expandido sobre a obra de Klein, desde as contribuições freudianas para o surgimento do termo “fantasias inconscientes”. Em um segundo momento, por sua vez, explora textos dos últimos 15 anos, os quais abordam as angústias das mães, as expectativas quanto à gestação de seu bebê e quanto ao vínculo com ele. Conclui-se que o foco se expandiu para contextos delicados (como prematuridade, adoecimento, vulnerabilidade social, etc.) e foi apontado que a relação necessita da existência da criança no universo imaginário materno, sendo essencial que uma equipe multiprofissional auxilie a mãe na criação de um elo com seu filho. Por fim, acrescenta-se a noção de que as ansiedades do bebê não derivam exclusivamente de sua experiência, mas também podem ser herdadas, segundo a autora brasileira Trachtenberg, com um foco maior nas fantasias inconscientes geradas pelo psiquismo materno e como elas afetam o vínculo mãe-bebê.

Palavras-chave: relações mãe-filho, relações materno-fetais, mãe-bebê, fantasias inconscientes, psicanálise, Melanie Klein.

Abstract

The text seeks to bring a comparison between Melanie Klein's theory about the relevance of unconscious fantasies, such as the mental representation of the infant's drives, for the mother-baby bond and a current theme. Thus, at first, it presents an expanded summary of Klein's work, from Freudian contributions to the emergence of the term “unconscious fantasies”. In a second moment, in turn, it explores texts from the last 15 years, which address the anxieties of mothers, expectations regarding the pregnancy of their baby and the bond with him. It is concluded that the focus has expanded to delicate contexts (such as prematurity, illness, social vulnerability, etc.) and it has been pointed out that the relationship requires the existence of the child in the maternal imaginary universe, and it is essential that a multidisciplinary team assist the mother in raising a bond with your child. Finally, we add the notion that the baby's anxieties do not derive exclusively from his experience, but can also be inherited, according to Brazilian author Trachtenberg, with a greater focus on unconscious fantasies generated by the maternal psyche and how they affect the bond mother-baby.

Keywords: mother-child relations, maternal-fetal relations, mother-baby, unconscious fantasies, psychoanalysis, Melanie Klein.

Resumen

El texto busca traer una comparación entre la teoría de Melanie Klein sobre la relevancia de las fantasías inconscientes, como la representación mental de las pulsiones del infante, para el vínculo madre-bebé y un tema de actualidad. Así, en un primer momento, se presenta un resumen ampliado de la obra de Klein, desde los aportes freudianos hasta el surgimiento del término “fantasías inconscientes”. En un segundo momento, a su vez, explora textos de los últimos 15 años, que abordan las ansiedades de las madres, las expectativas respecto al embarazo de su bebé y el vínculo con él. Se concluye que el enfoque se ha ampliado a contextos delicados (como prematuridad, enfermedad, vulnerabilidad social, etc.) y se ha señalado que la relación requiere de la existencia del niño en el universo imaginario materno, siendo imprescindible que Un equipo multidisciplinario ayuda a la madre a crear un vínculo con su hijo. Finalmente, agregamos la noción de que las ansiedades del bebé no se derivan exclusivamente de su experiencia, sino que también pueden ser heredadas, según el autor brasileño Trachtenberg, con un mayor enfoque en las fantasías inconscientes generadas por la psique materna y cómo afectan el vínculo madre-bebé.

Palabras clave: relaciones madre-hijo, relaciones materno-fetales, madre-bebé, fantasías inconscientes, psicoanálisis, Melanie Klein.

Introdução

A forma como o indivíduo interpreta e representa o mundo exterior em seu psiquismo advém, em grande parte, das fantasias, que, por sua vez, são derivações das pulsões e, portanto, inatas. Inicialmente, eram divididas por Melanie Klein em “phantasias", grafadas com “ph”, que são as fantasias inconscientes, e em fantasias, grafadas com “f”, que são as atividades fantasmáticas conscientes. Contudo, atualmente, prefere-se referenciá-las como conscientes e inconscientes .

As fantasias inconscientes primárias representam psiquicamente os impulsos libidinosos e agressivos da criança. Assim, tendem a assumir funções defensivas para dominar a angústia, controlar as pulsões e exprimir as tendências reparadoras; ou seja, possuem como finalidade primeira a satisfação do desejo, mas também diminuir culpa e acalmar tensão pulsional .

Para Freud, as crianças são dotadas de pulsão sexual, conforme o autor assinala em seu livro “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Freud apresenta, então, uma teoria de desenvolvimento psicossexual, segundo a qual as crianças obtêm prazer com algumas atividades relacionadas ao corpo, como o ato de sucção, a defecação e a masturbação e, a partir disso, evoluem psiquicamente .

Por sua vez, o conceito de fantasia inconsciente foi primariamente instituído por Freud no contexto das pesquisas sobre a instalação das neuroses. Inicialmente, para o “pai da psicanálise”, a origem das neuroses se dá nos primeiros anos da infância, por meio de traumas de conteúdo sexual, cujos afetos estariam ligados a eventos esquecidos. Entretanto, conforme ele avança em seus estudos, ele abandona a “teoria da sedução” e insere o conceito de fantasias inconscientes: elementos factuais, mas também impressões da realidade no inconsciente dos sujeitos. Essas fantasias infantis são a origem das fantasias adultas .

Para a autora Melanie Klein o desenvolvimento infantil tende à integração do ego e depende da sobreposição das pulsões de vida sobre as de morte, sendo que as fantasias inconscientes possuem importância na medida em que elas moldam a personalidade infantil .

Hanna Segal, a partir do pensamento kleiniano, exemplificou a elucidação de uma fantasia inconsciente na posição esquizo-paranoide (a primeira posição do desenvolvimento do lactente) pela dor da fome que a criança sente e a fantasia infantil de poder onisciente para criar um objeto gratificante a fim de cessar essa dor; ou, ainda, caso se considerem as fantasias derivadas da experiência negativa, o bebê faminto que rasga o seio da mãe com a mordida em função da fantasia inconsciente de um ataque persecutório do seio para a criança .

Tem-se que, para o movimento kleiniano, como o inconsciente é constituído por relacionamentos com objetos, as fantasias inconscientes são crenças na atividade de objetos “internos” concretamente sentidos. Isso significa que, para o bebê, em suas fantasias inconscientes, quando um objeto lhe provoca uma sensação agradável, esse objeto é entendido como “bom”, tal qual o seio da mãe que gratifica ao alimentá-lo. Por outro lado, quando o objeto causar uma sensação de desconforto, ele é entendido como um objeto “ruim”, como o seio que, ao demorar a fornecer o leite, é interpretado como sendo o seio “mau” .

Em relação aos reflexos e as fantasias, é apontado que o bebê experiencia seus reflexos biológicos em seu psicológico e vice-versa. Por exemplo, ao sentir fome em função do esvaziamento estomacal, a criança pequena sente medo e raiva, conduzindo ao entendimento de haver a ameaça de um perseguidor temível contra ele, mordendo o seio materno. Da mesma forma, ao encostar a boca no seio materno, o bebê vivencia a fantasia de um ser amável que lhe satisfaz e possui o reflexo biológico de sugar. Sendo assim, há um interacionismo entre corpo e mente, em que estímulos pulsionais provindos do corpo são mentalmente representados como uma fantasia inconsciente de uma relação com um objeto; e essas fantasias moldam a pessoa e seu mundo social .

Ainda, as fantasias inconscientes não são mencionadas apenas na qualidade de representações mentais das pulsões, podendo também representar ações defensivas contra a realidade. Duas ações defensivas são a projeção e a introjeção: no primeiro caso, a expulsão dos excrementos pode ser interpretada como um objeto “mau” que transita do mundo interno para o externo; no segundo, ao entender a presença de objetos “maus” dentro do próprio corpo, como em um momento de fome, a criança precisa incorporar o seio da mãe, um objeto “bom”, a fim de aliviar a sua ansiedade .

Dessa maneira, durante a posição esquizo-paranoide, ou persecutória, que abrange os três ou quatro primeiros meses de vida, percebe-se um bebê cujo ego seja bastante arcaico, capaz de perceber o objeto “mãe” de maneira rudimentar, fragmentada .

As fantasias inconscientes dessa posição se baseiam na cisão da mãe em seio bom, a mãe que gratifica e protege as pulsões libidinosas, e em seio mau, a mãe que frustra e para qual são projetadas as pulsões agressivas. Isso porque o ego primitivo ainda não é dotado de capacidade para compreender que o mesmo objeto que gratifica pode frustrar: há uma falta de maturidade desse ego e, por outro lado, ameaça das pulsões de morte contra as pulsões de vida .

O ego evolui na tendência à integração dos objetos: a criança na posição depressiva é consciente da existência de um objeto total, além de pessoal, unificado, real e externo. A criança, em suas fantasias inconscientes depressivas, não abandona as angústias anteriores, mas acrescenta o medo pela perda do objeto total. Como a mãe objetal é, igualmente, o fim de seus impulsos agressivos, a criança teme sua perda ou destruição. Também se angustia porque entende que a mesma pessoa que a gratifica é a que a frustra. No ato de sucção, a criança quer manter o objeto dentro de si e, quando ela o frustra, surge a angústia de ter destruído esse objeto. Novas defesas, as maníacas, são acionadas para conservar o objeto: as fantasias inconscientes de onipotência, por meio das quais a criança possui ilimitado poder de destruir e reconstruir o objeto, e de negação, tornando o objeto menos importante. Em sequência, a criança, por meio das fantasias inconscientes, retém o objeto bom apesar das experiências negativas .

As fantasias iniciais são resultado do contato do bebê com as sensações geradas pelo corpo da mãe - o som, a voz, o ritmo, o tato e o cheiro. Após o início da experiência gravitacional (porque na vida intrauterina o meio líquido aniquila a gravidade), existe uma necessidade de ancoragem, e o bebê entende essa adaptação como uma conquista de um novo ambiente - o corpo próprio e o materno .

Com o desenvolvimento, as experiências psicossomáticas são integradas com formas mais simbólicas de funcionamento e existe um intenso interesse da criança pelo próprio corpo, pelo corpo dos pais, pelo seu funcionamento e, em especial, pelo interior do corpo materno e seus conteúdos, com nuances de sadismo e de posse .

O contato epidérmico é o elemento mais importante para o relacionamento inicial e primeiras introjeções do ego. Quando o recém-nascido é despido, tem seu rosto banhado ou é segurado de maneira precária, ele sente angústia e um sentimento de aniquilamento, apresentando-se inquieto, descoordenado e choroso. Entretanto, quando é carregado no colo, vestido ou amamentado, essa angústia diminui. Assim, é esse contato com a pele da mãe, o primeiro objeto, que o bebê obtém a experiência (a fantasia inconsciente) de introjeção do objeto capaz de manter unidas as partes da personalidade e de haver um espaço (espaço cavitário) onde objetos possam ser introjetados .

Também outros elementos do corpo materno, como o cheiro ou a voz, despertam sensações que, experienciadas (fantasiadas), permitem a introjeção desse objeto que mantém a união dos compartimentos da personalidade (“ego” e “id”), indo-se além da função nutritiva do leite. Há uma intimidade física com a mãe durante a amamentação e uma busca de calor, de conforto e de apoio .

Apesar de o trabalho desenvolvido por Melanie Klein não focar nas relações parentais, relaciona o desenvolvimento do mundo interno da criança e a influência do mundo externo, por meio dos mecanismos de introjeção e de projeção. Por meio da introjeção, ele transforma o mundo externo em também interno. E, por meio da projeção, transfere para o objeto seus sentimentos .

A relação com o mundo externo ocorre com a primeira relação objetal, que se desenvolve com a mãe. O bebê, que já nasce com um ego rudimentar – porque há cisão egóica e objetal -, possui a mãe como o primeiro objeto de amor e ódio. São nos momentos de satisfação das necessidades que ele ama sua mãe e nos momentos de frustração ele sente ódio - e tenta destruir o objeto. Apesar de não reconhecer a mãe como uma pessoa antes dos quatro ou cinco meses, a relação com o seio é imediata, podendo inferir uma metonímia .

Os sentimentos de inveja e gratidão são sentidos pelo bebê em relação à mãe. Sente inveja porque é o seio da mãe o detentor de todo o prazer que o gratificou ou sente gratidão porque o amor se faz capaz de superar os sentimentos destrutivos dos momentos de desconforto. E esses sentimentos são disposições inatas e variáveis segundos os indivíduos .

A criança que tende mais à gratificação consegue melhor introjetar o objeto bom, integrar o ego e suportar a culpa. A razão é ser a gratidão um pré-requisito do reconhecimento do objeto bom como “bom”. Portanto, não basta que a gratificação seja oferecida, ela deve ser aceita; e a capacidade para investir libido no seio é a gratidão, cuja gradação é individual .

Por sua vez, a criança invejosa distorce e amplifica as frustrações, entendendo o seio materno como persecutório, interna e externamente: é o fator responsável por confundir a clivagem primária entre seio bom e mau. A inveja é, em 1957, o elemento que estraga (spoil) o prazer oral primário, impossibilitando o sentimento de gratidão e estabelecendo o ódio pelo seio bom, e consequentemente, pela mãe. Ela nasce do conhecimento inato do seio bom, a partir da defasagem entre a fantasia de um seio inesgotável (idealizado) e a realidade, que é acompanhada inevitavelmente por privações .

Esta fantasia inconsciente apresenta o seio como bom e mau, simultaneamente: “bom” como fonte inesgotável de gratificação e “mau” porque guarda egoisticamente para si sua benesse, os objetos parciais, frustrando o sujeito em uma relação de triangulação .

Nesse sentido, a inveja é um sentimento antagonista à gratidão: esta é o processo psíquico que permite a reparação, transformando em “bom” o objeto estragado e evitando que ele se transforme em perseguidor .

Além disso, é notório que a ansiedade gerada pela inveja foge da lei do talião, comum ao lactente: o seio bom se torna mau sem qualquer ataque sádico prévio do lactente .

Como consequência, existe o risco de que a falta de clivagem resultante da inveja promova a identificação projetiva “má”: o bebê introjeta no ego elementos negativos, pois minimiza-os, já que “bom” e “mau” confundem-se. Também, a confusão entre o “bom e o “mau” conduz a inabilidade do lactente em perlaborar as ansiedades persecutórias e depressivas, visto que elas se confundem umas com as outras .

Diante disso, as fantasias inconscientes em Melanie Klein não se dirigem a um objeto simplesmente “neutro”, um objeto pulsional, mas a mãe é um parceiro objetal, que concede e recusa gratificação, o que implica na própria noção de gratidão. Quer dizer as fantasias inconscientes para o pensamento kleiniano remetem sempre a um relacionamento com a mãe, permeando o mundo interno do lactente e da formação de personalidade a partir da qualidade e carência da alimentação e dos cuidados maternos, bem como de fatores pertencentes à constituição individual (intensidade da inveja, força do ego, capacidade de amar, de tolerar a frustração, a ansiedade, etc.) .

Objetivos

O artigo pretende trazer uma atualização sobre a temática kleiniana acerca da importância das fantasias inconscientes para o vínculo mãe-bebê saudável.

Métodos

Esta é uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo bibliográfico que busca discutir os conceitos da autora britânica Melanie Klein sob o olhar dos autores atuais.

Os estudos foram pesquisados nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Banco de Dados em Enfermagem (BDENF), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e IndexPsi Periódicos.

Inicialmente, os trabalhos seriam selecionados dentre os últimos quinze anos, porém foram incluídos trabalhos ou livros anteriores a esse período, pois foram considerados relevantes à pesquisa.

Foram encontrados 31 trabalhos, dentre os quais artigos científicos e teses, sendo que oito foram excluídos por não se enquadrarem nos objetivos do artigo e outros por serem duplicados, restando 23.

Foram utilizados 20 trabalhos em língua portuguesa, 2 em língua inglesa e 1 em língua espanhola, a partir das palavras-chave “mãe-bebê”, “mãe-filho”, “fantasias inconscientes”, “imaginário”, "relações objetais”, “psicanálise”, “Melanie Klein”.

Resultados

Experimentos foram descritos nos textos analisados, apontando para a formação de um vínculo entre mãe e filho, desde o nascimento, e para como o corpo materno é essencial nesse processo .

Houve a preferência dos fetos por determinados estímulos, caso ele sofresse mudanças no padrão dos batimentos cardíacos ou começasse a se mover; os resultados apontam para o fato de que eles distinguiam as vozes de duas pessoas e, principalmente, se estimulados por vozes femininas, em especial de sua mãe .

Igualmente houve a preferência pelo odor e pela face materna (neste caso, após, apenas, 48 horas de vida), quando comparado a outras mulheres; com cinco dias de vida, os bebês mostram predileção por panos embebidos com o leite materno, em contraste a panos sem odor; e com seis dias, discriminam o cheiro do leite materno em detrimento ao cheiro do leite de outras mulheres; o foco visual dos recém-nascidos, de cerca de 30 cm, permite a troca de olhares com a mãe durante a amamentação; nascem com a capacidade de orientar olhos, cabeça e pescoço para estímulos sonoros com a voz da mãe, e se acalmam com a voz e o toque .

Para a filogenética, nesse mesmo trabalho, mais amplamente com os humanos, os mamíferos quando filhotes sofrem com a separação da mãe, o que resulta, inclusive, em danos relacionados ao estresse, caso as separações sejam repetidas e prolongadas. O aumento dos níveis de glicocorticoides levou à lesão permanente dos núcleos dopaminérgicos do mesencéfalo de ratos utilizados em estudos – esses neurônios possuem função essencial para o controle da motricidade, sinalização de recompensa na aprendizagem comportamental e motivação. Igualmente com macacos, pode-se observar a liberação de hormônios e neuropeptídios, afetando estruturas cerebrais relacionadas às emoções, influindo comportamentos violentos e impulsivos .

O toque materno, ainda, é descrito como um dos comportamentos mais básicos dos mamíferos e inicia-se logo após o nascimento. Esse contato inicial influencia o comportamento e a fisiologia do filhote recém-nascido que, por sua vez, modula a fisiologia materna .

Também, em relação aos humanos, estritamente, pesquisas apontam para essa mesma direção: indivíduos, no início do desenvolvimento infantil, cujos cuidadores são assertivos e atenciosos, encontram menor resposta de hormônios ligados ao estresse e, por conseguinte, sabendo que os pais estão próximos, eles são capazes de lidar melhor com situações ameaçadoras. Existe uma simbiose entre mãe e filho bastante precoce, envolvendo sistemas sensoriais, hormônios e funções corporais básicas: o choro e a tristeza do bebê frente à falta de cuidado da mãe conduz à redução de opioides cerebrais, responsáveis pelo bem-estar, e do ácido gama-aminobutírico (GABA), um dos principais neurotransmissores cerebrais. Experiências negativas e persistentes podem provocar danos permanentes no sistema de resposta ao estresse, predispondo o sujeito para transtornos depressivos e ansiosos. Ainda, esse sistema está conectado ao sistema nervoso autônomo, afetando os sistemas digestivo, cardíaco, respiratório e imune, além das emoções .

Há o aproveitamento do contato mãe-filho pelos profissionais e locais assistenciais com o fim de promoção de saúde das crianças, com destaque ao método canguru .

Fonagy, Steele e Steele defendem uma comunicação mãe-bebê, complexa, marcada pela pulsionalidade, que se inicia desde a vida intrauterina .

Kupfer afirma que a mãe, a partir de sua linguagem e de seu olhar, investe libido em direção a seu filho, possibilitando ao bebê uma subjetividade . Teperman acrescenta que a função materna é o que permite ao filho um relacionamento com o outro .

A psicanalista inglesa Frances Tustin apoia-se na inevitável noção de que o cuidado materno não é ilimitado, pois existem circunstâncias adversas que afastam a mãe de seu filho. Uma outra questão diz respeito à ideia de feminilidade e seu elo à maternagem. Alvarenga reforça os conceitos lacanianos de que o desejo da mulher não se resume à maternagem. Do mesmo modo, Jerusalinsky disserta sobre a sociedade atual, segundo a qual há uma “diversificação em seus modos de acesso à realização fálica, fazendo da maternidade uma escolha possível entre tantas outras” .

Mas o que acontece se houver falhas nessas trocas de subjetividades, no processo de projeção e introjeção ou durante a identificação resultante desses processos? Bion explica que esses erros resultam em efeitos danosos ao aparelho psíquico e às emoções. Cramer e Palacio-Espasa também discutem a questão, afirmando a existência de distúrbios psicológicos nos primeiros anos de vida a partir de relações disruptivas afetivas. Já Lacan julga, em “Outros escritos”, que existe uma extensão dos sintomas dos pais nos sintomas dos filhos: “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar” .

Para Trachtenberg existem legados intergeracionais e transgeracionais, relativos às subjetividades facilitadoras e dificultadoras do vínculo entre mãe e filho, bem como da subjetivação .

Define-se “legado intergeracional” o direcionamento de que a figura materna se utiliza para evitar invadir o psiquismo de seu filho com angústias abusivas, decorrentes de lutas mal resolvidas e traumas não elaborados e que podem gerar danos psíquicos ao bebê. Todavia, as “transmissões transgeracionais” são destrutivas, pois deixam escapar esses sentimentos, dificultando a elaboração pelo bebê das angústias primitivas e o desenvolvimento do vínculo mãe-filho. Quer dizer, tudo aquilo que for indizível – pelo teor de se reviver uma violência, um trauma, um medo – pode ser herdado pelo filho de seus antepassados: há uma redução inconsciente do investimento libidinal da mãe em direção ao filho e uma aquisição pelo filho das angústias vivenciadas pela mãe (e não por ele) em função da identificação projetiva mãe-bebê .

Os trabalhos também trouxeram as fantasias maternas, que são as expectativas da mãe quanto a sua gestação, seu bebê e seu vínculo com seu filho. Segundo Stern, a partir do terceiro mês de gestação, após o período mais crítico para o abortamento, inicia-se o processo de representação do bebê imaginário. Esse processo, para o autor, não é marcado pelo aspecto biológico da gestação, mas é um curso subjetivo porque a futura mãe deve passar, relacionando as experiências físicas às psicológicas e históricas. São essas fantasias que permitem que a mãe invista libido em seu bebê ..

Contudo, sobre o bebê prematuro ou com malformações, ou qualquer outra condição que afaste o bebê real do imaginado, diversos textos abordam a presença de sentimentos como medo, culpa, impotência e ansiedade pelo confronto entre o bebê imaginado (que atende às expectativas narcísicas da mãe) e o bebê real, o que afeta a estruturação do vínculo com o bebê. É preciso destacar que, segundo Soulé, o bebê imaginário é dotado da plena capacidade de realizar os desejos narcísicos da mãe que o imagina; dessa maneira, a importância da representação de bebê imaginário resulta em sua influência sobre o relacionamento a ser estabelecido entre mãe e filho da realidade .

Representações parentais, que englobam aspectos afetivos e cognitivos que permeiam a experiência subjetiva, são formadas antes do nascimento da criança e as representações das interações com a criança podem ou não ser equilibradas. Uma interação equilibrada caracteriza-se por aludir a experiências de gratificação e à aceitação. Nas representações desequilibradas há alusões a intrusão, hostilidade, controle e negativismo, gerando atitudes como distanciamento emocional e regressão materna e paterna. O sucesso de vínculo depende, segundo os textos, do trabalho psicológico dos pais, abarcando o luto simbólico do bebê idealizado, as angústias, as ansiedades, a possibilidade da morte e estimular o contato a fim de construir um lugar simbólico para o filho .

Atualmente, contudo, os exames pré-natais, segundo Soulé, têm aproximado o bebê real durante o período gestacional, bem como o método Canguru, em partos prematuros, e equipes multidisciplinares em condições diversas .

Explorou-se a possibilidade de a mulher assumir um papel satisfatório como mãe em um contexto de vulnerabilidade (carentes de uma rede de apoio social e familiar), por exemplo, sob a óptica de esfera prisional, em um local onde imperaram a idealização da mulher grávida ou puérpera. Assim, relata-se que a equipe da unidade prisional se unia para ajudar às mulheres e aos bebês. Também, havia uma esperança, com a maternidade, de uma mudança de vida, de uma sensibilização para a reflexão sobre a vida futura .

Entretanto, os autores expandem observações sobre a pulsionalidade da mulher, que não se resume a de mãe, mas sim uma mulher com possibilidades diversas de realização. Também, os trabalhos apontam para o fato de que há dificuldades quanto ao ser mãe, por exemplo, em relação aos desafios à amamentação exclusiva durante os primeiros seis meses de vida do filho - em contraponto a uma visão tradicional de dever materno de “amor incondicional” .

Discussão

Para Freud, cujas contribuições em relação às fantasias inconscientes foram as primeiras, temos que as fantasias inconscientes são “ficções protetoras” modificadoras da realidade penosa, uma reconstrução de uma cena, transformando-a em uma narrativa mais satisfatória pelo psiquismo do paciente e entendida pelo paciente como verdadeira .

Melanie Klein insere o tema das fantasias inconscientes em sua tese sobre o desenvolvimento do sujeito a partir de seu vínculo com sua progenitora, simbolizada pelo seio, ora “bom”, ora “mau” - em alusão às sensações despertadas por esse seio no lactente. Para a psicanalista britânica, as fantasias inconscientes subjazem a todo o processo mental e podem ser interpretadas como um relacionamento com o objeto que desperta a sensação no objeto. Ou seja, diferentemente de Freud, que entendia o desenvolvimento do lactente como resultado do estímulo do bebê de seu próprio corpo, Klein percebeu o vínculo mãe-bebê a razão para a gênese do psiquismo infantil .

Em relação à origem dos transtornos mentais, Klein aponta para os processos que culminam na falta de integração do “ego”, destacando-se a dificuldade de separação entre os seios “bom” e “mau”, o que faz fusão entre as ansiedades persecutórias e depressivas, dificultando a superação das posições esquizo-paranóide e depressiva pela criança .

É inegável o quanto a autora britânica Melanie Klein, cujos escritos datam os meados do século XX, ainda influem na Psicanálise atual. Entretanto, percebe-se que o foco de estudo atual sobre o vínculo mãe-bebê expandiu-se para contextos delicados como prematuridade, vulnerabilidades sociais, etc. Além disso, acrescenta-se a noção de que as ansiedades do bebê não derivam exclusivamente de sua experiência, mas também seriam herdadas, de acordo com a autora brasileira Trachtenberg

Enquanto Klein aborda o desenvolvimento psíquico do bebê a partir das experiências vivenciadas por ele e as angústias decorrentes dessas vivências; Trachtenberg mostra a influência do psiquismo materno formado influenciando o psiquismo infantil em formação, transmitindo simbologias, tradições, memórias, fantasias inconscientes, imagos, mas também os vazios - com uma inversão de destino do psiquismo, incluindo as angústias. Nesse caso, é a mãe quem deposita suas aflições no bebê; ou seja, diferentemente do que o pensamento kleiniano aborda, para o qual as angústias do bebê seriam um resultado de suas próprias vivências e teriam um direcionamento projetivo para a mãe, a autora brasileira menciona o fato de que existem angústias sentidas pelo bebê fruto das experiências maternas, passadas da mãe para o bebê a partir de um processo inconsciente de identificação afetiva

Além disso, pesquisas demonstram a existência de um vínculo mãe-bebê desde o período fetal, alterações hormonais a depender da assertividade do cuidado dos pais, além de lesões cerebrais após a separação prolongada e repetitiva entre filhotes e suas mães. Ademais, os textos abordam as angústias das mães, as expectativas quanto a sua gestação, seu bebê e esse vínculo. Ressalta-se a necessidade da existência da criança no universo imaginário materno, pois a relação mãe-bebê pode ser afetada pelas representações maternas, sendo essencial que uma equipe multiprofissional auxilie a mãe reduzindo a distância entre o filho imaginado e o real

Conclusão

O desenvolvimento da personalidade infantil tende à integração do ego e depende da sobreposição das pulsões de vida sobre as de morte. Nesse processo, a interação do recém-nascido com a figura materna é ponto chave, sendo que o contexto no qual o binômio mãe-bebê está inserido e as angústias maternas são determinantes para o sucesso dessa interação, pois repercutem na existência da prole no imaginário materno. Sendo assim, a inserção das gestantes em programas de pré-natal e a adoção de projetos que reforcem o vínculo desse binômio, como o Método Canguru, permitem o diagnóstico precoce de condições patológicas do feto e situações de vulnerabilidade social, o cuidado pela equipe dos medos e angústias decorrentes e o desenvolvimento oportuno da representação do filho no psiquismo da mãe.

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Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024