Editorial

O futuro dos padecentes de transtornos mentais em conflito com a lei após a publicação da Resolução 487/23 pelo Conselho Nacional de Justiça

The future of people suffering from mental disorders in conflict with the law after the publication of Resolution 487/23 by the National Council of Justice

El futuro de las personas que padecen trastornos mentales en conflicto con la ley tras la publicación de la Resolución 487/23 del Consejo Nacional de Justicia

1. Antônio Geraldo da Silva
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2. Lisieux Elaine de Borba Telles
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3. Milena Ferreira de França Alexandre
e-mail orcid Lattes

4. Luiz Felipe Rigonatti
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5. Maria Dilma Alves Teodoro
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6. José Brasileiro Dourado Junior
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7. Alexandre Martins Valença
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Filiação dos autores:

1 [Pós doutor, Medicina Molecular, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil]
2 [Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil]
3 [Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, FCM, UPE, Recife, PE, Brasil]
4 [Instituto de Psiquiatria, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, Ipq FMUSP, São Paulo, SP, Brasil]
5 [Faculdade de Medicina, Universidade de Brasília, UNB, Brasília, DF, Brasil]
6 [Psiquiatra, Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Pernambuco, HC-UFPE, Recife, PE, Brasil]
7 [Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil]

Editor-chefe responsável pelo artigo: Leandro Fernandes Malloy-Diniz

Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT:Silva AG [1, 10, 14], Telles LEB, Alexandre MFF, Rigonatti LF, Teodoro MDA, Dourado Junior JB, Valença AM [1, 2, 3, 5, 13]

Conflito de interesses: declaram não haver

Fonte de financiamento: declaram não haver

Parecer CEP: não se aplica

Recebido em: 19/02/2024 | Aprovado em: 28/02/2024 | Publicado em: 01/03/2024

Como citar: Silva AG, Telles LEB, Alexandre MFF, Rigonatti LF, Teodoro MDA, Dourado Junior JB, Valença AM. O futuro dos padecentes de transtornos mentais em conflito com a lei após a publicação da Resolução 487/23 pelo Conselho Nacional de Justiça. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024;14:1-8. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2024.v14.1180

Resumo

O objetivo deste Editorial é discutir e realizar críticas em relação à Resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça, que pretende extinguir os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico no Brasil. A resolução fere a Lei 10.216, quando não garante ao padecente de transtorno mental, ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades. Consequentemente traz prejuízo à sociedade, ao portador de transtorno mental e aos serviços de saúde, impondo risco aos mesmos.

Palavras-chave: Resolução 487/2023, transtorno mental, comportamento violento, medida de segurança, hospitais de custódia.

Abstract

The purpose of this Editorial is to discuss and criticize the Resolution 487 of the National Council of Justice, which intends to extinguish forensic psychiatric hospitals in Brazil. The resolution violates Law 10.216, when it does not guarantee that people with mental disorders will have access to the best treatment in the health system, in accordance with their needs. Consequently, it harms society, patients with mental disorders and health services, imposing risk to them.

Keywords: Resolution 487/2023, mental disorder, violent behavior, security measure, custodial hospitals.

Resumen

El propósito de este Editorial es discutir y criticar la Resolución 487 del Consejo Nacional de Justicia, que pretende extinguir los Hospitales de Custodia y Tratamiento Psiquiátrico. La resolución viola la Ley 10.216, al no garantizar que las personas con trastornos mentales tengan acceso al mejor tratamiento en el sistema de salud, acorde a sus necesidades. En consecuencia, perjudica a la sociedad, a los pacientes con trastornos mentales y a los servicios de salud, imponiéndoles un riesgo.

Palabras-chave: Resolución 487/2023, trastorno mental, comportamiento violento, medida de seguridad, hospitales de custodia.

A Resolução 487 de 15 de fevereiro de 2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) propõe o fim dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs), embasada em uma política puramente ideológica chamada “luta antimanicomial” . Entretanto, é importante ressaltar o impacto que tal medida promoverá na saúde mental e como a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) irá absorver a extinção deste dispositivo. O Hospital de Custódia e Tratamento (HCTP) foi criado em 1921, onde teve Heitor Carrilho como referência na criação e administração deste dispositivo, sendo considerado uma evolução terapêutica em seu tempo. Seu propósito se fundamenta na necessidade de dispor de um ambiente adequado para tratamento de padecentes de transtornos mentais em conflito com a lei. Isso se dá pelo fato de indivíduos com tais condições específicas apresentarem um risco de comportamento violento aumentado, portanto necessitando de um cuidado mais intensivo e especializado, sob risco de maiores perdas para si e para a sociedade . Ao longo dos anos, vários HCTPs foram sendo construídos ampliando a perspectiva de cuidado com essa população peculiar, promovendo segurança para a sociedade e principalmente promovendo tratamento adequado para padecentes de transtornos mentais em conflito com a lei.

Na década de 80, a ascensão dos movimentos sanitários e da luta antimanicomial culminaram em uma política devastadora que propõe o fim dos hospitais psiquiátricos. Surgiu também a proposta de extirpar da segurança pública e da administração penitenciária este instituto que é o HCTP. Com o objetivo de se atingir um consenso, em 2001 foi instituída a Lei 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas padecentes de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

A Lei 10.216 redireciona o modelo assistencial, trazendo como direito o tratamento preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental. Entretanto, vale ressaltar que não extingue o dispositivo de internação, compreendendo sua importância para os quadros psiquiátricos mais graves. Isto está posto em seu artigo 6, parágrafo único, inciso I, II e III. Portanto é possível afirmar que não há lei que determine fechamentos de hospitais, sejam de custódia ou não . E sendo os HCTPs fechados, o que acontecerá com os padecentes de transtornos mentais em conflitos com a lei ao serem inseridos na RAPS?

Sobre essa pergunta é importante entender que a Rede de Atenção Psicossocial, instituída pela Portaria 3.088 de 23 de dezembro de 2011, do Ministério da Saúde, está centrada nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), não tendo participação efetiva nem integração dos demais serviços que a compõem, como as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), Prontos Socorros Clínicos, além de suporte insuficiente das Unidades Básicas de Saúde, que são serviços que compõem a RAPS. A busca ideológica em centralizar o cuidado nos CAPS vem fragilizando ambulatórios especializados, emergências e hospitais psiquiátricos especializados, comprometendo a qualidade do cuidado e da atenção à saúde mental. Logo, quando os padecentes de transtornos mentais em conflito com a lei forem destituídos do direito de serem tratados em um HCTP, eles serão inseridos em dispositivos que não estão preparados para recebê-los, gerando ausência de cuidados e de intervenções terapêuticas necessárias .

É sabido que os CAPS, na maioria dos municípios brasileiros, funcionam de forma pouco estruturada, em número insuficiente, sem articulação com os demais dispositivos da RAPS, com equipes incompletas, inclusive sem psiquiatras, consequentemente com baixo poder de resolutividade, especialmente para casos graves, como pacientes psicóticos ofensores. Dessa forma, indivíduos em conflito com a lei que apresentam quadros psiquiátricos graves ficarão desassistidos, aumentando o risco de violência para a sociedade, inclusive aumentando o número de padecentes de transtornos mentais em presídios, o que já foi observado, havendo uma população aproximada de 12% de portadores de transtornos mentais graves em presídios no estado de São Paulo .

A resolução 487/2023 ignora diversos artigos do Código Penal e estabelece que um indivíduo que cometeu um delito, havendo suspeita de transtorno mental, será avaliado pela equipe da RAPS. De acordo com o código penal, quando há dúvida sobre a sanidade mental de um acusado de delito, deverá ser instalado o Incidente de Insanidade Mental, e esse indivíduo será avaliado por perito oficial do estado, que vai se manifestar por um documento chamado LAUDO, avaliando sua imputabilidade penal. Por outro lado, a resolução diz que esses passos serão feitos pelos profissionais da RAPS. Aqui existe um conflito ético, visto que esses profissionais não podem estar no papel de assistência e perícia ao mesmo tempo .

Além disso, a referida resolução dá margem a indivíduos que não têm doença mental, alegarem doença, para receberem “tratamento” na RAPS, ao invés de punição pelas leis. Ela extingue os hospitais de custódia e estabelece que havendo indicação de internação essa deverá ocorrer em Hospitais Gerais. Vale salientar que não há leitos de saúde mental em hospitais gerais suficientes para atender a demanda geral da psiquiatria, hoje existente. São apenas 2.131 leitos, distribuídos em alguns estados. De acordo com a portaria 148/2012 do Ministério da Saúde, esses leitos devem ser assistidos por médicos clínicos. Aqueles hospitais com 11 a 20 leitos serão assistidos preferencialmente por médico psiquiatra. Consequentemente, os pacientes não receberão atendimento especializado, podendo ocorrer agravamento de seus transtornos mentais.

É sabido que a maioria dos pacientes em cumprimento de medida de segurança já haviam recebido tratamento na comunidade, antes da prática delitiva. O tratamento na comunidade não foi suficiente para coibir o delito frente à complexidade e gravidade da(s) doença(s) e dos fatores envolvidos. Há necessidade de tratamento especializado que conte com equipe treinada e formada para tal fim, sob a coordenação de um psiquiatra forense.

Por outro lado, pacientes psicóticos, liberados sem avaliação mais detalhada de sua psicopatologia, estarão em risco de sofrer vitimização, sofrendo agressões de indivíduos da comunidade. Muitos deles poderão ser envolvidos no tráfico de drogas como “laranjas”. Também é possível haver um aumento das taxas de suicídio desses pacientes. Uma vez que esses pacientes psicóticos sejam libertados dos hospitais de custódia sem critérios claros e objetivos, eles também poderão se envolver em comportamento delituoso e entrar pelas portas do sistema prisional, ao invés do sistema de assistência em saúde mental. As prisões passarão a ter altas taxas de indivíduos com doença mental, que se perpetuarão na doença e na criminalidade.

É necessária a existência de pelo menos um Hospital Psiquiátrico Forense por Estado, para atendimento de casos mais graves, com pessoal qualificado, em número adequado e devidamente treinado para atender este tipo de paciente, nos moldes da psiquiatria forense moderna. Destaca-se a importância de equipes de saúde mental completas, compostas por médico psiquiatra, médico clínico, psicólogo, assistente social, enfermeiro, auxiliares de enfermagem e terapeuta ocupacional.

Existem vários estudos mostrando que o doente mental não tratado apresenta mais risco de violência. Inclusive possuir doença mental grave é um dos fatores de risco nas escalas de avaliação de risco de violência como a HCR-202, uma escala para avaliar risco de comportamento violento. Além do mais, é justamente a periculosidade, ou seja, o risco de recidiva criminal que justifica a Medida de Segurança (MS). Certamente é também importante a instalação de um protocolo de aplicação de instrumentos diagnósticos e de avaliação de risco de violência, a fim de minimização de problemas no momento de modificação das penas e do término da MS. Também há necessidade de padronização nas avaliações psiquiátricas forenses com treinamento de escalas psicométricas adequadas. Nos Programas de Atendimento em Saúde Mental para Crianças e Adolescentes, seria importante a existência de um fluxo para avaliação (multiprofissional) de menores com discurso ou comportamento violento nas escolas. O fluxograma facilitaria as avaliações que, realizadas de forma precoce, poderiam evitar os episódios de violência nas escolas.

Por fim, concluímos que tal resolução fere a Lei 10.216 quando não garante ao padecente de transtorno mental ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades. Consequentemente, traz prejuízo à sociedade, ao portador de transtorno mental e aos serviços de saúde, impondo risco aos mesmos. Ressaltamos ainda, que na elaboração da resolução, não houve discussão com os principais agentes de cuidado dessa população e seus órgãos representativos, como Conselho Federal de Medicina, Associação Brasileira de Psiquiatria, Associação Brasileira do Ministério Público e demais associações, privando tais entidades de participarem da discussão e colaborarem na construção de um modelo ideal que não promovesse um cenário caótico para essa população específica.

Referências

1. Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei n. 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança. Brasília: CNJ [2023]. https://atos.cnj.jus.br/files/original2015232023022863fe60db44835.pdf

2. Abdalla-Filho E, Chalub M, Telles LEB. Psiquiatria Forense do Taborda. 3ª edição. Porto Alegre: Artmed; 2016. 3. BRASIL. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Brasília: Diário Oficial da União. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2001/lei-10216-6-abril-2001-364458-publicacaooriginal-1-pl.html

3. BRASIL. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Brasília: Diário Oficial da União. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2001/lei-10216-6-abril-2001-364458-publicacaooriginal-1-pl.html

4. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Brasília: Diário Oficial da União n. 96 de 21.05.2013, Seção 1; p.37. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=21/05/2013&jornal=1&pagina=37&totalArquivos=176

5. Andreoli SB, Santos MM, Quintana MI, Ribeiro WS, Blay SL, Taborda JG, de Jesus Mari J. Prevalence of mental disorders among prisoners in the state of Sao Paulo, Brazil. PLoS One. 2014;9(2):e88836. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0088836

6. Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Associação Médica Brasileira (AMB), Conselho Federal de Medicina (CFM), Federação Nacional de Médicos (FENAM), Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp). Diretrizes para um modelo de atenção integral em saúde mental no Brasil. 2020:1-36. https://doi.org/10.25118/issn.2965-1832.2024.1190

7. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Nº 148, de 31 de dezembro de 2012. Define as normas de funcionamento e habilitação do Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, do Componente Hospitalar da Rede de Atenção Psicossocial, e institui incentivos financeiros de investimento e de custeio. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0148_31_01_2012.html

Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024