Artigos Originais

Dez anos de experiência com a justiça terapêutica no Brasil

Ten years of experience with therapeutic justice in Brazil

Diez años de experiencia con justicia terapéutica en Brasil

1. Ariella Hasegawa Galvão dos Santos
e-mail orcid Lattes

2. Mário Sérgio Sobrinho
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3. Rodney Clayde Bolsone Elias da Silva
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4. Francisco Xavier Pauliquevis de Almeida Prado
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5. Patricia Takesaki Miyaji Naricawa
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6. Pedro Ferreira Leite Neto
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7. Ronaldo Ramos Laranjeira
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Filiação dos autores:

1 [Diretora técnica, Ambulatório Médico de Especialidades de Psiquiatria Dra Jandira Masur, AME, São Paulo, SP, Brasil]

2 [Procurador, Ministério Público do Estado de São Paulo, MPSP, São Paulo, SP, Brasil]

3, 5, 6 [Promotor, Ministério Público do Estado de São Paulo, MPSP, São Paulo, SP, Brasil]

4 [Coordenador médico, Ambulatório Médico de Especialidades de Psiquiatria Dra Jandira Masur, AME, São Paulo, SP, Brasil]

7 [Presidente, Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, SPDM, São Paulo, SP, Brasil]

Editor-chefe responsável pelo artigo: Lisieux Elaine de Borba Telles

Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: AHG, Sobrinho MS, Silva RCBE, Prado FXPA, Naricawa PTM [1,2,13,14], Leite Neto PF [14]

Conflito de interesses: declaram não haver

Fonte de financiamento: declaram não haver

Parecer CEP: não se aplica

Recebido em: 29/2/2023 | Aprovado em: 18/06/2024 | Publicado em: 05/08/2024

Como citar: Santos AHG, Sobrinho MS, Silva RCBE, Prado FXPA, Naricawa PTM, Leite Neto PF. Dez anos de experiência com a justiça terapêutica no Brasil. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024;14:1-22. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2024.v14.1192

Resumo

Introdução: A Justiça Terapêutica (JT) surgiu nos EUA em 1989 para reduzir a população carcerária de crimes ligados às drogas. Focada na reabilitação e tratamento dos infratores, a JT possui um potencial promissor na reincidência e na reintegração social, para aliviar a superlotação dos presídios e reduzir a demanda para o judiciário. No Brasil, começou no Rio Grande do Sul em 2000 e em São Paulo em 2002. Objetivo: Descrever a construção do Projeto JT pelo Ministério Público do Estado de São Paulo e sua parceria com o Ambulatório Médico de Especialidades de Psiquiatria Dra. Jandira Masur (AME Psiquiatria) sob gestão da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), fornecendo dados sobre o perfil e desfecho de 150 pacientes encaminhados pela JT para o AME Psiquiatria de março de 2012 a dezembro de 2022. Metodologia: Estudo transversal descritivo com dados de 150 autores de delitos encaminhados pelo Ministério Público ao AME Psiquiatria no Programa da JT entre março de 2012 a dezembro de 2022. Resultados: Dos encaminhados que aceitaram a proposta de transação penal ou suspensão condicional do processo, 59,80% cumpriram integralmente o benefício. A maioria (49%) apresentava transtorno relacionado ao uso de álcool, seguido por transtorno relacionado ao uso de cannabis (17%) e cocaína ou crack (10%). 14% não foram avaliados e 2% não tiveram diagnóstico pela CID-10. Conclusão: A parceria entre o Ministério Público e o AME Psiquiatria na zona norte de São Paulo possibilitou o acesso ao tratamento de infratores com transtornos mentais relacionados ao uso de álcool e outras drogas. A experiência de 10 anos dessa colaboração indica um caminho replicável em outros locais, mesmo com recursos financeiros limitados, demonstrando a sustentabilidade do Programa da JT. Esta descrição prática pode apoiar futuros estudos que demonstrem a eficácia do programa no Brasil.

Palavras-chave: justiça terapêutica, ambulatório hospitalar, ministério público, psiquiatria, saúde mental, dependência de drogas, uso nocivo, álcool, etanol, cannabis, maconha, cocaína, crack, drogas.

Abstract

Introduction: Therapeutic Justice (TJ) emerged in the United States in 1989 to reduce the prison population associated with drug-related crimes. Focused on the rehabilitation and treatment of offenders, TJ holds promising potential for reducing recidivism and facilitating social reintegration, thereby alleviating prison overcrowding and reducing the demand on the judiciary. In Brazil, it began in Rio Grande do Sul in 2000 and in São Paulo in 2002. Objective: Describe the construction of Project TJ by the Public Prosecutor's Office of the State of São Paulo and its partnership with the Medical Outpatient Specialty Clinic in Psychiatry, Dr. Jandira Masur (AME Psychiatry), under the management of the São Paulo Association for the Development of Medicine (SPDM), providing data on the profile and outcome of 150 patients referred by the TJ to the AME Psychiatry from March 2012 to December 2022. Methodology: Descriptive cross-sectional study with data from 150 authors of offenses referred by the Public Prosecutor's Office to AME Psychiatry in the TJ Program between March 2012 and December 2022. Results: Of those referred who accepted the proposal of penal transaction or conditional suspension of the process, 59.80% fully complied with the benefit. The majority (49%) had a disorder related to alcohol use, followed by cannabis-related disorder (17%) and cocaine or crack-related disorder (10%). 14% were not evaluated and 2% did not have a diagnosis according to ICD-10. Conclusion: The partnership between the Public Prosecutor's Office and the AME Psychiatry in the northern zone of São Paulo has enabled access to treatment for offenders with mental disorders related to the use of alcohol and other drugs. The ten-year experience of this collaboration suggests a replicable model for other regions, even with limited financial resources, demonstrating the sustainability of the TJ Program. This practical description can support future studies that demonstrate the program's efficacy in Brazil.

Keywords: therapeutic justice, outpatient clinic hospital, public prosecutor's office, psychiatry, mental health, drugs dependency, harmful use, alcohol, ethanol, cannabis, marijuana, cocaine, crack, drugs.

Resumen

Introducción: La Justicia Terapéutica (JT) surgió en los EE.UU en 1989 para reducir la población carcelaria por delitos relacionados con las drogas. Enfocada en la rehabilitación y el tratamiento de los infractores; esta tiene un potencial prometedor en la reducción de la reincidencia y la reintegración social, aliviando la superpoblación de las cárceles y reduciendo la demanda para el poder judicial. En Brasil, se inició este proceso en Rio Grande del Sur en 2000 y en São Paulo en 2002. Objetivo: Describir la construcción del Proyecto JT por el Ministerio Público del Estado de São Paulo y su colaboración con la Atención Especializada de Psiquiatría Dra. Jandira Masur (AME Psiquiatría) bajo la gestión de la Asociación Paulista para el Desarrollo de la Medicina (SPDM), proporcionando datos sobre el perfil y los resultados de 150 pacientes derivados por la JT al AME Psiquiatría desde marzo de 2012 hasta diciembre de 2022. Metodología: Estudio transversal descriptivo con datos de 150 autores de delitos recomendados por el Ministerio Público al AME Psiquiatría en el Programa de JT entre marzo de 2012 y diciembre de 2022. Resultados: De los infractores que aceptaron la propuesta de transacción penal o suspensión condicional del proceso, el 59,80% cumplió completamente con el beneficio. La mayoría (49%) presentaba trastornos relacionados con el uso de alcohol, seguido por trastornos relacionados con el uso de cannabis (17%) y cocaína o crack (10%). El 14% no fue evaluado y el 2% no tuvo diagnóstico según la CID-10. Conclusión: La colaboración entre el Ministerio Público y el AME Psiquiatría en la zona norte de São Paulo permitió el acceso al tratamiento de infractores con trastornos mentales relacionados al uso de alcohol y otras drogas. La experiencia de 10 años de la colaboración indica un camino replicable en otros lugares, incluso con recursos financieros limitados, demostrando la sostenibilidad del Programa de JT. Esta descripción práctica puede apoyar estudios futuros que demuestren la eficacia del programa en Brasil.

Palabras clave: justicia terapéutica, ambulatorio, ministerio público, psiquiatría, salud mental, dependencia de drogas, uso nocivo, alcohol, etanol, cannabis, marihuana, cocaína, crack, drogas.

Introdução

A Justiça Terapêutica (JT) surgiu nos Estados Unidos da América, no estado da Flórida, em 1989, como uma resposta ao crescente problema da superlotação carcerária e das detenções recorrentes associadas ao uso de drogas . Este modelo se insere no contexto da justiça consensual ou negociada, no qual as partes envolvidas no processo penal buscam uma solução que atenda aos interesses da sociedade, representada pelo Ministério Público, e também do réu, que participa do acordo assistido por um advogado. A resposta do Estado, em face da ocorrência do crime, passa a ter, então, um caráter educativo ao substituir o modelo punitivista do processo penal por um modelo construtivista, no qual o autor do fato, ao invés de receber uma pena, dialoga com a acusação e concorda em cumprir com o programa de tratamento e/ou curso educativo.

A abordagem da JT representa uma mudança significativa no paradigma do sistema penal, substituindo o foco punitivo por uma abordagem construtivista. Na qual o autor do crime não é simplesmente sentenciado, mas sim incentivado a participar de programas educativos e de tratamento. Isso torna a JT inovadora por sua ênfase na educação, tratamento e prevenção da reincidência. No entanto, implementar e manter a JT apresenta desafios, uma vez que sua criação não é imposta pela lei e requer uma colaboração eficaz entre os diversos atores do sistema de justiça, saúde e assistência social. No Brasil, a JT teve início em 2000, no Estado do Rio Grande do Sul, e desde então tem se expandido para outras regiões do país, com diferentes denominações, como Justiça Restaurativa ou Justiça Cidadã .

Este estudo se propõe a descrever como o Ministério Público construiu a JT no Estado de São Paulo e estabeleceu parcerias com instituições de saúde, como o AME Psiquiatria, além de fornecer dados epidemiológicos e desfechos dos pacientes assistidos pela JT nessa unidade de saúde durante um período específico.

Na parte jurídica, a Lei 9.099/1995 e a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) são fundamentais para embasar a implementação e funcionamento da JT, permitindo acordos consensuais e medidas terapêuticas para autores de delitos leves e usuários de drogas.

A construção da JT em São Paulo foi uma iniciativa dos convergentes entre os membros e integrantes do MPSP, do Poder Judiciário, da Ordem dos Advogados (OAB) e/ou da Defensoria Pública, aproveitando os mecanismos legais existentes. Durante duas décadas, essa parceria se fortaleceu, envolvendo diversos setores da sociedade e resultando na implementação da JT em várias cidades do estado.

O fluxo do projeto JT no fórum envolve uma avaliação criteriosa dos casos, negociação entre as partes e acompanhamento do cumprimento do acordo, com a participação ativa de promotores de justiça, advogados e juízes.

A parceria entre o Ministério Público e o AME Psiquiatria é um exemplo de como a integração entre os sistemas judiciário e de saúde pode beneficiar os infratores que necessitam de tratamento para problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. O AME Psiquiatria oferece uma ampla gama de serviços especializados, incluindo avaliação, tratamento e acompanhamento dos pacientes encaminhados pela JT.

O objetivo deste estudo é descrever como o Ministério Público construiu a JT no Estado de São Paulo e como se estabeleceu a parceria com o AME Psiquiatria. Além de fornecer os dados do perfil epidemiológico e o desfecho no âmbito da saúde e do judiciário dos 112 pacientes da JT assistidos nesta unidade de saúde no período de março de 2012 até maio de 2021.

Base jurídica

A Lei 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) inovou o sistema legal brasileiro ao introduzir ações consensuais criminais até então não previstas e ampliar oportunidades ao aplicar medidas terapêuticas aos autores de delitos leves. Assim, essa lei possibilitou a celebração do acordo criminal envolvendo promotor de justiça, advogado/defensor e infrator, além do Juiz. Esse acordo, chamado transação penal, pode ser aplicado à pessoa primária que cometeu infração cuja pena máxima não ultrapasse o limite de dois anos de prisão .

Nesse caso, se houver indicação de que o infrator é usuário, abusador ou dependente de AOD, ele e o advogado podem aceitar a proposta de adesão à JT, celebrando acordo com o promotor de justiça e homologado pelo juiz. A partir disso, o infrator assume o compromisso de comprovar a frequência às atividades programadas, sendo que o não cumprimento acarreta a revogação do acordo e eventual ajuizamento da ação penal.

Além disso, a Lei de Drogas (art. 28, Lei 11.343/2006) amplia as oportunidades da JT ao prever a possibilidade de o juiz aplicar advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento ao programa ou curso educativo como sentença ao crime de posse de droga para uso próprio .

Construção da JT no Estado de São Paulo

A construção da JT no Estado de São Paulo foi uma iniciativa voluntária do MPSP iniciada no ano de 2002 com o apoio do poder judiciário e da OAB, a partir da aplicação de mecanismos legais preexistentes. Durante esses 20 anos, o programa consolidou a parceria entre os setores da justiça, saúde, assistência social, segurança pública, organizações privadas, além de grupos de mútua ajuda, tais como Alcoólicos Anônimos (A.A.), Narcóticos Anônimos (N.A.), Amor Exigente (A.E.), Associação Antialcoólica do Estado de São Paulo (AAESP), Al-Anon e Nar-Anon.

No Estado de São Paulo, várias cidades implementaram a JT, como São José dos Campos, Mairiporã, Tatuí, Santos, Mogi das Cruzes, Barueri, Santo André, Ubatuba, Pindamonhangaba, Itapecerica da Serra, Santana de Parnaíba e Jaboticabal. Em relação à JT do Foro Regional e da Promotoria de Justiça Criminal de Santana, as primeiras ações foram em 2002, impulsionadas pela Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que ampliou os institutos inseridos pelos membros do MP e permitiu a participação ativa do Promotor de Justiça na audiência preliminar, com o contato rápido e direto do órgão do MP com o infrator e, se necessário, também com a vítima.

Fluxo do Projeto JT no Fórum

Inicialmente, o Promotor de Justiça avalia o incidente criminal, verificando a presença do componente relacionado a álcool e outras drogas (AOD) e investigando o histórico do infrator. Esta análise é crucial, visto que a legislação veda acordos com reincidentes ou indivíduos com antecedentes criminais. Posteriormente, o Promotor faz uma avaliação para determinar se o acordo proposto é adequado para prevenir futuras transgressões por parte do réu ou autor do fato, considerando o benefício para a sociedade.

Estabelecidos esses critérios, o réu ou autor do fato é convocado para receber a proposta de acordo, que pode resultar na prevenção ou suspensão do processo. Nesse estágio, é fundamental que ele esteja acompanhado de um defensor particular ou público para auxiliá-lo nas negociações, possibilitando a aplicação de medidas terapêuticas em todas as etapas do processo.

Os casos são discutidos em um dia designado, com a realização de uma palestra ministrada por representantes de diversas entidades. Estes destacam seus papéis no apoio aos envolvidos com AOD e suas famílias, visto que o impacto do uso ou dependência de drogas não se limita ao usuário, afetando também seus familiares, que devem ser incluídos no plano terapêutico. Após a palestra, inicia-se a fase de negociação individual, na qual não se discute a prova dos autos, mas sim a adesão à JT para evitar ou suspender o processo. Nessa etapa, tanto o Ministério Público (acusação) quanto o infrator, acompanhado de seu advogado (defesa), estão presentes. Para o sucesso do acordo, é essencial que o Promotor de Justiça adote uma postura acolhedora, ressaltando as vantagens do programa e enfatizando que a participação não é obrigatória. Por fim, o Ministério Público deve ouvir e analisar a contraoferta da defesa.

Uma vez que o programa é aceito, o prazo de duração das medidas restritivas é discutido e supervisionado pelo juiz, que pode sugerir ajustes para equilibrar os interesses da sociedade e do réu.

Critérios de elegibilidade para o programa

A inclusão do infrator que abusa de AOD na oferta de cuidados terapêuticos é viável sem a necessidade de alterações legislativas, conforme descrito na Tabela 1.

A parceria entre o Ministério Público e o AME Psiquiatria

Desde 2012, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) estabeleceu uma parceria com o AME Psiquiatria como parte do Projeto JT. Essa colaboração envolve o encaminhamento de infratores para este ambulatório após a celebração do acordo na audiência. Durante o período determinado no acordo, que varia de três a seis meses, o réu ou autor do fato deve comparecer ao serviço semanalmente.

Essa parceria visa proporcionar ao judiciário acesso a uma rede terapêutica especializada para atender o indivíduo e sua família. Assim, o acompanhamento no AME Psiquiatria pode continuar mesmo após o término do acordo da JT. Desde 2012, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) estabeleceu uma parceria com o AME Psiquiatria como parte do Projeto JT. Essa colaboração envolve o encaminhamento de infratores para este ambulatório após a celebração do acordo na audiência. Durante o período determinado no acordo, que varia de três a seis meses, o réu ou autor do fato deve comparecer ao serviço semanalmente.

AME Psiquiatria

O AME Psiquiatria é um serviço essencial da atenção secundária do Sistema Único de Saúde (SUS), especializado no tratamento de saúde mental. Destina-se a pacientes com transtornos mentais moderados e graves, que apresentam descompensação psicopatológica e necessitam de assistência especializada. Este serviço é frequentemente utilizado como referência por diversas unidades de saúde, como Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), hospitais e prontos-socorros .

A equipe do AME Psiquiatria é composta por profissionais de diversas áreas, incluindo psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, enfermeiros, neurologistas e farmacêuticos. Eles colaboram na elaboração do Plano Terapêutico Singular (PTS), que abrange cinco especialidades principais: transtornos de humor e ansiedade, transtornos relacionados ao uso de álcool e outras drogas, psiquiatria geriátrica, transtornos psicóticos e esquizofrenia, e psiquiatria da infância e adolescência .

O ambulatório do AME Psiquiatria oferece atendimento tanto individual quanto em grupo, para pacientes e seus familiares, além de realizar exames laboratoriais quando necessário para investigação diagnóstica. Cada paciente assistido no ambulatório é acompanhado por um enfermeiro de referência, que realiza o gerenciamento de caso de forma abrangente, de acordo com as necessidades específicas do paciente .

No primeiro atendimento, o paciente é recebido pelo grupo de acolhimento, composto por um enfermeiro, psicólogo e/ou terapeuta ocupacional. Nesse grupo, é oferecido um espaço aberto para que as pessoas exponham livremente suas expectativas em relação ao acompanhamento. A equipe, por sua vez, inicia o vínculo com o paciente, apresentando a organização do serviço e estabelecendo um compromisso com o tratamento.

No mesmo dia, o paciente passa por uma avaliação médica, durante a qual são realizados a anamnese e o exame psíquico. Por meio de uma entrevista completa e, se necessário, uma ou mais consultas adicionais, é elaborado o histórico do padrão de uso, e são identificados os sinais e sintomas. Com base nesses dados, é feito o diagnóstico e definido o PTS.

O PTS estabelece a trilha do cuidado com o paciente, alinhando as intervenções possíveis às expectativas do paciente e da família. As intervenções podem incluir tratamentos medicamentosos e multidisciplinares realizados por psicólogos, enfermeiros e/ou terapeutas ocupacionais. Esta abordagem trabalha no engajamento, na motivação para a mudança, no tratamento ativo, na prevenção de recaídas e no treinamento de habilidades sociais do paciente.

Todos os participantes do programa também participam de um grupo semanal de psicoeducação online, com 12 encontros que abordam temas como: apresentação do programa da Justiça Terapêutica, transtornos mentais mais prevalentes na população brasileira (depressão, ansiedade, psicose, transtorno bipolar), conceitos sobre transtornos por uso de substâncias, importância dos hábitos saudáveis de vida, conceitos sobre emoções e sentimentos, e habilidades sociais e comunicação.

Após o diagnóstico, a efetivação do PTS e a estabilização do quadro clínico, o paciente é encaminhado para outros serviços de saúde conforme sua necessidade, por meio de um processo de encaminhamento implicado ou corresponsável realizado pelo serviço social. O AME Psiquiatria garante assistência até que o paciente seja inserido em outro serviço de saúde que atenda às suas necessidades, conforme estabelecido pela Lei 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais .

Metodologia

Amostra

O estudo foi desenvolvido com base em uma amostra de conveniência de 150 autores de delitos encaminhados pelo Ministério Público ao AME Psiquiatria entre março de 2012 e dezembro de 2022, no âmbito do Projeto JT. Trata-se de um estudo transversal descritivo.

Coleta de dados

Os dados foram coletados dos prontuários eletrônicos e físicos mantidos pelo AME Psiquiatria. Os prontuários incluíam informações detalhadas sobre os pacientes, como perfil epidemiológico, diagnósticos psiquiátricos e seguimento no ambulatório.

Tipo de infração penal e desfecho do processo

Os dados foram coletados a partir dos prontuários eletrônicos e físicos mantidos pelo AME Psiquiatria, bem como pela análise dos processos penais pelo Ministério Público. Os prontuários incluíam informações detalhadas sobre os pacientes, tais como perfil epidemiológico, diagnósticos psiquiátricos e seguimento no ambulatório. A análise dos processos penais forneceu dados adicionais sobre o tipo de infração penal e o desfecho do processo judicial.

Critérios de inclusão

Foram incluídos no estudo todos os pacientes encaminhados pelo Ministério Público ao AME Psiquiatria como parte do acordo da JT de março de 2012 a dezembro de 2022. Todos os pacientes deveriam ter cumprido o acompanhamento no AME Psiquiatria pelo período mínimo determinado pelo Judiciário.

Critérios de exclusão

Foram excluídos do estudo todos os pacientes encaminhados por instituições ou equipamentos que não o Ministério Público.

Variáveis analisadas

As principais variáveis analisadas foram:

  1. Tipo de Infração Penal: Classificação dos delitos cometidos pelos participantes.
  2. Desfecho do Processo: Resultados judiciais após a participação no programa de JT.
  3. Perfil Epidemiológico: Idade, sexo, situação socioeconômica e outros dados demográficos.
  4. Diagnósticos Psiquiátricos: Transtornos mentais identificados através de anamnese e exames psiquiátricos.
  5. Seguimento no Ambulatório: Frequência de atendimentos, adesão ao tratamento e evolução clínica.

Procedimentos de análise

Os dados foram tabulados em planilha de excel (Office 365 da Microsoft). As análises descritivas incluíram frequências, porcentagens e médias para caracterizar a população estudada.

Processamento dos dados

Entrada de Dados: Todos os dados foram digitalizados e armazenados em um banco de dados seguro e confidencial.

Verificação de Qualidade: Os dados foram revisados para garantir a precisão e a completude das informações registradas.

Aspectos éticos

O estudo foi conduzido em conformidade com as diretrizes éticas de pesquisa envolvendo seres humanos. Todos os dados dos pacientes foram anonimizados para garantir a privacidade e a confidencialidade.

Resultados

O levantamento realizado no Foro Criminal de Santana [Gráfico 1] revelou que dos 150 beneficiados pelo Programa da JT, 29% estavam relacionados ao crime de posse de drogas para consumo pessoal (artigo 28 da Lei 11.343/06) , enquanto 46% estavam ligados ao delito de embriaguez ao volante (artigo 306 do CTB) . Não foi possível apurar 3% dos casos. Nota-se, no entanto, a aplicação da Justiça Terapêutica em outros delitos, nos quais a dependência de álcool e/ou drogas influencia na prática criminosa, representando 22% dos casos, envolvendo crimes como ameaça, lesão corporal, desacato e resistência, entre outros.

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Dos autores, 68% que aceitaram a proposta de transação penal ou suspensão condicional do processo cumpriram integralmente o benefício [Gráfico 2] e, ao final do acompanhamento, tiveram sua punibilidade extinta. Além disso, observa-se que as transações penais e as suspensões condicionais do processo em andamento totalizaram 16%. Por outro lado, 16% dos autores não cumpriram o benefício despenalizador, e destes, 25% foram condenados ao final do processo.

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Perfil dos autores encaminhados para o AME Psiquiatria

O perfil epidemiológico dos autores encaminhados para o AME Psiquiatria [Gráfico 3] é predominantemente masculino (90%) e composto em sua maioria por adultos jovens, com idades entre 20 e 34 anos.

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Dos 150 usuários, 48% se autodeclararam como brancos, 34% como pardos, 10% como negros, 1% como amarelos e 7% não informaram sua cor.

Quanto aos diagnósticos pelo Código Internacional de Doenças (CID-10), 61% apresentavam algum transtorno relacionado ao uso de álcool, 14% algum transtorno relacionado ao uso de cannabis, 8% algum transtorno relacionado ao uso de cocaína ou crack, 4% transtornos relacionados ao uso de múltiplas substâncias, 2% outros transtornos mentais e 11% dos usuários não foram avaliados por um médico [Gráfico 4].

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De todos que tinha algum transtorno mental relacionado a alguma substância, 51% tinha critérios de dependência por alguma substância, conforme Tabela 2.

Quanto ao desfecho no AME [Gráfico 5], 46% dos usuários receberam alta por abandono, 29% tiveram alta melhorada, 15% foram encaminhados para alta e 10% foram encaminhados pelo projeto, mas não compareceram ao AME Psiquiatria. Portanto, dos que compareceram ao ambulatório (136 pessoas), 49% cumpriram o Plano Terapêutico Singular.

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Discussão

A justiça terapêutica no Brasil é uma abordagem relativamente nova, e a literatura nacional disponível sobre o assunto é escassa. Embora haja sugestões promissoras sobre sua aplicação, os resultados concretos ainda são limitados, tanto em termos de eficácia quanto de implementação do programa.

Este artigo é original no sentido de descrever como a parceria entre o judiciário e a saúde foi estabelecida e se sustenta na prática. Segundo estudos, formalizar os vínculos organizacionais entre esses setores ajuda a reduzir as barreiras ao acesso ao tratamento .

Além disso, destaca-se que o tratamento no AME Psiquiatria é público e custeado 100% pelo Sistema Único de Saúde, o que ultrapassa outra importante barreira de acesso .

Os resultados deste estudo destacam uma predominância de casos relacionados à embriaguez ao volante e posse de drogas para uso pessoal entre os indivíduos encaminhados ao AME Psiquiatria. Essa constatação ressalta a urgência de abordagens que não apenas lidem com as consequências legais desses atos, mas também abordem suas causas subjacentes, como o abuso de substâncias.

A condução sob efeito de álcool, principal delito responsável pelo encaminhamento do Ministério Público, é reconhecida internacionalmente como um fator de risco significativo para acidentes de trânsito, com potencial lesivo tanto para os autores quanto para terceiros.

Estudo da OPAS destaca que os níveis de álcool no sangue acima de 0,05% aumentam consideravelmente o risco de acidentes, especialmente entre os jovens, que são uma das populações mais vulneráveis e as lesões causadas pelo trânsito são uma das principais causas de morte dessa faixa etária entre 15 e 49 anos nas Américas . Segundo a análise de laudos do IML de São Paulo, em 1999, relativos a vítimas fatais de acidentes de trânsito, verificaram 47% com alcoolemia positiva .

Além da perda de vidas humanas, as lesões causadas por acidentes de trânsito têm gerado custos sociais crescentes. O número de pessoas com invalidez permanente saltou de 33 mil em 2002 para 352 mil em 2012 (variação positiva de 1.066% em 10 anos). Dessa forma, são pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) aos vitimados um milhão de benefícios a um custo de 12 bilhões de reais, números que tendem a crescer ainda mais .

Estudo realizado na Califórnia mostrou uma economia de 7 dólares em custos de justiça criminal, bem-estar e saúde para cada 1 dólar investido em Tribunais de Drogas .

Quanto ao cumprimento do acordo, constatou-se que 68% dos encaminhados tiveram a sua punibilidade extinta. Essa descoberta sugere um impacto significativo na redução dos custos associados à manutenção de processos judiciais e na prevenção da aplicação de penas desproporcionais, corroborando com achados de outros estudos que indicam uma relação favorável de benefícios em dólares para custos nos programas de JT.

Esse resultado positivo pode estar associado, segundo estudo, a boas práticas exercidas no tratamento realizado no AME Psiquiatria: maior ênfase na formação de um relacionamento terapêutico entre o infrator e a equipe especializada; aumento do interesse e motivação para a terapia, possivelmente através do uso contínuo ao longo do tribunal da JT de sessões periódicas de entrevistas motivacionais durante o tratamento; e reforço de maior envolvimento dos familiares no programa de tratamento supervisionado .

Quanto a avaliação diagnóstica inicialmente, esperava-se que muitos dos infratores encaminhados ao AME Psiquiatria não apresentassem um diagnóstico de transtorno mental relacionado ao uso de substâncias, pois as infrações poderiam ter ocorrido em momentos pontuais de intoxicação ou porte de droga ilícita.

No entanto, os dados coletados revelam o oposto. Quase metade dos encaminhados apresentou critérios diagnósticos para transtornos relacionados ao uso de álcool, com uma proporção significativamente maior de dependentes em comparação com a população em geral. Isso destaca a importância da parceria entre o AME Psiquiatria e o Ministério Público para fornecer assistência especializada em tratamento de dependência química, em vez de simplesmente punir aqueles que precisam de ajuda.

Conclusão

O uso de álcool e outras drogas é considerado um grave e complexo problema de saúde pública, que precisa ser encarado com intervenções que acolham usuário de substâncias com humanização compreendendo o processo saúde/doença envolvido que impacta toda a sociedade de modo indiscriminado. O amplo impacto na sociedade pelo uso nocivo e dependência de AOD, exige respostas públicas qualificadas, intersetoriais e integradas.

Neste contexto a experiência da parceria entre o Ministério Público e o AME Psiquiatria na zona norte da cidade de São Paulo, trouxe uma oportunidade para o acesso ao tratamento de infratores através do poder judiciário, sendo que aproximadamente 98% dos que foram avaliados pelo médico, tinham diagnóstico de transtorno mental relacionado ao álcool e outras drogas e necessitavam de tratamento.

O relato da parceria entre o Ministério Público e o AME Psiquiatria na zona norte de São Paulo destaca uma abordagem promissora para lidar com o problema do abuso de substâncias, proporcionando acesso ao tratamento para infratores através do sistema judiciário. Os resultados obtidos sugerem que essa abordagem pode não apenas reduzir custos associados à manutenção de processos judiciais, mas também prevenir penas desproporcionais e fornecer tratamento adequado para transtornos relacionados ao uso de substâncias.

Este estudo indica que o Programa da Justiça Terapêutica desempenham um papel crucial na abordagem das questões relacionadas ao abuso de substâncias e seus impactos na sociedade. Isso destaca a importância de intervenções abrangentes que considerem não apenas as consequências legais, mas também as causas subjacentes desses comportamentos, alinhando-se com descobertas de outros estudos que apontam para a eficácia e os benefícios econômicos da JT.

Referências

1. Nolan JL Jr. Drug treatment courts and the disease paradigm. Subst Use Misuse. 2002;37(12-13):1723-50. https://doi.org/10.1081/ja-120014428 PMID:12487240

2. Castro TC. A utilização da justiça terapêutica no tratamento dos adolescentes infratores envolvidos com drogas [trabalho de conclusão de curso]. Fortaleza: Universidade de Fortaleza; 2003.

3. Brasil. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm

4. Brasil. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm

5. Brasil. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503compilado.htm

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7. Brasil. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm

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Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024