Filiação dos autores:
1, 4, 6, 8 [Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil]
2 [Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil]
3 [Psiquiatra Forense, Médico Assistente do Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Recife, PE, Brasil]
5 [Instituto de Psiquiatria, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, Ipq FMUSP, São Paulo, SP, Brasil]
7 [Pós-Doutor em Medicina Molecular, Presidente, Associação Brasileira de Psiquiatria, ABP, Rio de Janeiro, RJ, Brasil]
Editor-chefe responsável pelo artigo: Leonardo Baldaçara
Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: Valença AM, Telles LEB, Dourado Junior JB, Meyer LF, Rigonatti LF, Nardi AE [1,6], Moraes TM, Silva AG [1]
Conflito de interesses: declaram não haver
Fonte de financiamento: declaram não haver
Parecer CEP: Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPUB - Número do Parecer: 1.334.993
Recebido em: 23/11/2024 | Aprovado em: 28/11/2024 | Publicado em: 04/12/2024
Como citar: Valença AM, Telles LEB, Dourado Junior JB, Meyer LF, Rigonatti LF, Moraes TM, da Silva AG, Nardi AE. Crime sexual e esquizofrenia: spectos forenses: relato de caso. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024;14:1-8. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2024.v14.1310
É apresentado o caso de um indivíduo com diagnóstico de esquizofrenia que cometeu um delito sexual e foi submetido a perícia psiquiátrica para avaliação de responsabilidade penal, sendo considerado inimputável. São discutidos fatores que podem contribuir para delitos dessa natureza, em indivíduos com transtornos psicóticos.
Palavras-chave: esquizofrenia, psicose, crime sexual, ofensa sexual, imputabilidade.
The case of an individual diagnosed with schizophrenia who committed a sexual offense and was submitted to psychiatric expertise for evaluation of criminal responsibility is presented, being considered non-imputable. Factors that may contribute to crimes of this nature in individuals with psychotic disorders are discussed.
Keywords: schizophrenia, psychosis, sexual crime, sexual offense, imputability.
Se presenta el caso de una persona diagnosticada de esquizofrenia que cometió un delito sexual y fue sometida a pericia psiquiátrica para evaluación de responsabilidad penal, siendo considerada no imputable. Se discuten los factores que pueden contribuir a los delitos de esta naturaleza en individuos con trastornos psicóticos.
Palabras-chave: esquizofrenia; psicosis; delitos sexuales; ofensa sexual, imputabilidad.
A violência sexual é um fenômeno que ocorre mundialmente e é considerado um grave problema social e de saúde pública. No Brasil, estima-se que cerca de 822 mil casos de estupros ocorram a cada ano, ou seja, aproximadamente dois casos por minuto . No entanto, esses números podem ser ainda maiores devido à baixa notificação dos casos pela polícia e serviços de saúde.
Considerando a alta prevalência de delitos sexuais no Brasil, a identificação das principais características desse tipo de perpetrador é de fundamental importância tanto para a área legal quanto científica. Um crescente número de estudos científicos tem buscado esclarecer a relação entre a violência sexual e transtorno mental.
Os criminosos sexuais com transtornos psicóticos comórbidos representam um grupo heterogêneo que necessita de mais estudos e atenção da comunidade médica e científica. Dados sugerem que aproximadamente 5 a 10% dos criminosos sexuais apresentam algum transtorno psicótico; essa taxa ainda pode chegar a 16% em hospitais psiquiátricos forenses .
Alden et al. avaliou a associação entre transtornos psicóticos e ofensa sexual entre pessoas nascidas na Dinamarca entre 1944 e 1947. Na amostra de 173,559 homens, 1,1% foram presos por violência sexual, enquanto 2,2% foram hospitalizados devido a um transtorno psicótico (esquizofrenia, transtorno mental orgânico, psicose afetiva e outros transtornos psicóticos). Destes, 8,4% estiveram envolvidos em violência sexual fisicamente agressiva e 9% envolvidos com violência sexual não fisicamente agressiva. Os indivíduos que foram hospitalizados com transtorno psicótico tiveram probabilidade quatro vezes maior de serem presos por violência sexual não fisicamente agressiva quando comparados coma população geral.
Um estudo recente de revisão sistemática encontrou que indivíduos com diagnóstico de transtorno do espectro da esquizofrenia perpetraram mais crimes sexuais, comparados a controles saudáveis da comunidade Margari et al. .
Este estudo tem por finalidade apresentar o caso de um indivíduo diagnosticado com esquizofrenia paranoide que cometeu um delito sexual e passou por perícia psiquiátrica para avaliação de imputabilidade penal em um serviço público do Rio de Janeiro-Brasil.
M., sexo masculino, 44 anos, natural do Rio de Janeiro, casado (separado), ensino fundamental completo. De acordo com informações do exame pericial, M. foi acusado de estupro contra sua então esposa, com quem foi casado durante doze anos. M. havia iniciado tratamento psiquiátrico há alguns anos antes de cometer o delito, com relato de uma internação em hospital psiquiátrico. O paciente periciando não fazia uso de medicações psiquiátricas após a alta hospitalar.
Durante o exame, M. apresentava atitude extremamente desconfiada na maior parte do tempo, olhava para trás várias vezes e permanecia atento a todo movimento que ocorria ao seu redor. M. dizia que “tudo que eu faço eu estou sendo perseguido... eu estou sofrendo perseguição demoníaca, espiritual e material”. Acrescenta que “eu escuto conversa de vozes sobre mim, como se eu estivesse em casa ouvindo coisas do quartel... os espíritos querem derrubar a minha vida... eu tenho a revelação de coisas de Deus e do diabo”.
Questionado sobre a acusação de estupro, M. diz “houve um estresse da minha parte e aí eu peguei ela pelo braço e a levei para o motel para a gente conversar... eu queria que ela se abrisse comigo... eu escuto as pessoas fazerem conspiração contra mim para me matarem espiritualmente”. Acrescenta que “minha esposa me traiu com informação para eles... eu gostaria de saber quem é o tal de Marquinhos, pois ela (esposa) falou o nome desse cara no motel... teve um dia que entraram em minha casa e jogaram cocaína em pó no meu café”.
No exame psiquiátrico pericial foram descritos sintomatologia delirante alucinatória, com alucinações auditivo-verbais, delírio de ciúmes, místico e persecutório, juízo de realidade prejudicado, atitude suspicaz e hipervigilância. Segundo informações fornecidas pela própria vítima, houve uma mudança radical do comportamento do periciando dois anos antes dos fatos, quando acreditava que amantes da vítima entravam na casa onde eles residiam.
O exame pericial concluiu que M. reunia critérios suficientes para o diagnóstico de esquizofrenia paranóide conforme a CID-10. O periciando apresentava total adesão de sua personalidade à sintomatologia psicótica e foi considerado inimputável.
Muitas teorias têm sido postuladas para explicar a relação entre psicose e violência sexual. Uma revisão da literatura sobre o tema encontrou que a psicose pode contribuir direta ou indiretamente para a violência sexual . Alucinações de comando ou com temática sexual e/ou crenças delirantes podem, em casos raros, diretamente resultar em uma ofensa sexual; já a excitação aumentada, pensamento desorganizado e prejuízo do funcionamento social podem contribuir indiretamente para a ofensa sexual.
Além disso, o uso de substâncias por criminosos sexuais com esquizofrenia pode contribuir para o comportamento sexual inadequado, por meio da desinibição e comprometimento interpessoal, ou por reduzir o comportamento social e sexual adequados .
O estudo de revisão realizado por Moulden & Marshall encontrou quatro fatores que podem explicar o fenômeno da violência sexual entre indivíduos com transtorno mental grave (incluindo a esquizofrenia): (1) parafilia pré-existente; (2) violência diretamente regulada por sintoma; (3) transtorno de personalidade comórbido; e (4) prejuízo neurológico e/ou outros fatores. A parafilia pré-existente pode motivar a violência ou a descompensação aguda de algum transtorno mental pode diminuir as estratégias de inibição dos impulsos sexuais.
Um estudo retrospectivo conduzido por Alish et al. comparou três grupos distintos de homens: criminosos sexuais com esquizofrenia, criminosos não sexuais com esquizofrenia e criminosos sexuais sem esquizofrenia. Dos 36 casos de violência sexual, apenas um esteve diretamente relacionado a sintomas psicóticos clássicos, como alucinações, paranoia e delírios de referência. O estudo observou que a violência sexual cometida por indivíduos com esquizofrenia apresenta natureza e contexto semelhantes aos delitos cometidos pelo grupo de criminosos sexuais sem esquizofrenia. Os dois grupos de criminosos sexuais tiveram taxas semelhantes de parafilia, o que sugere que este diagnóstico não está necessariamente relacionado a síndromes psicóticas e pode representar um subconjunto do comportamento sexual criminal.
Ainda de acordo com dados do mesmo estudo, no grupo de criminosos sexuais com esquizofrenia, foram observadas as maiores de taxas de casamento e emprego, o que pode indicar tais indivíduos possuem um melhor funcionamento social do que os outros subgrupos . Os dados sugerem que as vítimas de criminosos sexuais com esquizofrenia tendem a ser do sexo feminino, enquanto as vítimas de criminosos sexuais sem esquizofrenia tendem a ser do sexo masculino, principalmente crianças e adolescentes.
Ao analisar 68 criminosos sexuais considerados inimputáveis em um hospital psiquiátrico forense na Califórnia, Holoyda, McDermott e Newman et al. encontrou que a maioria tinha diagnóstico de transtorno psicótico primário, associado com altas taxas de abuso de substâncias, transtornos de personalidade e transtornos parafílicos. Ao comparar tais indivíduos com outros inimputáveis que não praticaram violência sexual, os autores encontraram menores taxas de condenações prévias e primeira prisão mais tardia. Embora essas diferenças não estejam completamente esclarecidas, supõe-se que os criminosos sexuais inimputáveis apresentam menos características antissociais do que os inimputáveis que cometeram crimes não sexuais.
O papel dos transtornos mentais sobre o risco de violência sexual ainda é desconhecido. Algumas pesquisas sugerem que os transtornos mentais comórbidos podem aumentar a recidiva criminal e o reincarceramento. Em um estudo realizado na Suécia , ao revisar registros de 1.000 prisioneiros que cometeram delitos sexuais, foi observado que o grupo de indivíduos com transtorno psicótico teve 5,1 vezes mais probabilidade de reincidência criminal quando comparado aos indivíduos sem psicose, com tempo de seguimento médio de 5,7 anos. No entanto, são necessários mais estudos para melhor entender a relação entre reincidência criminal e indivíduos com psicose.
No caso de M., os sintomas psicóticos tiveram influência direta no comportamento delituoso, o que é demonstrado em diversos estudos sobre o tema . À época do crime, M. apresentava descompensação aguda do quadro psiquiátrico, com vivências alucinatórias, crenças delirantes (principalmente delírio de ciúmes direcionado à vítima), prejuízo significativo do julgamento crítico e desinibição do controle dos impulsos. Sendo assim, o acusado não reunia as condições necessárias para ser responsabilizado criminalmente pelo delito e foi considerado inimputável.
A violência sexual praticada por indivíduos com transtornos psicóticos é um fenômeno desafiador que desperta grande interesse clínico e forense, porém ainda é pouco estudado pela comunidade científica. Dados sugerem que a síndrome psicótica pode ter relação direta com a violência sexual ou pode estar associada a outros diagnósticos psiquiátricos, principalmente uso de substâncias e parafilias. A avaliação psiquiátrico-forense é fundamental para o diagnóstico e tratamento adequado de indivíduos com transtornos mentais que cometem crimes sexuais, dessa forma atingindo estabilidade clínica e possivelmente diminuição das taxas de reincidência criminal desta população.
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