Filiação dos autores:
1 [Professor, Departamento de Psiquiatria e Psicoterapia, Centro de
Estudos José de Barros Falcão, Porto Alegre, RS, Brasil]
2 [Pós-Doutor em Medicina Molecular, Presidente, Associação Brasileira
de Psiquiatria, ABP, Rio de Janeiro, RJ, Brasil]
Editor-chefe responsável pelo artigo: Leandro Fernandes Malloy-Diniz
Conflito de interesses: declaram não haver
Fonte de financiamento: declaram não haver
Parecer CEP: não se aplica
Recebido em: 20/08/2024 | Aprovado em: 21/08/2024 | Publicado em: 02/09/2024
Como citar: Weber CAT, da Silva AG. Novas faculdades de medicina, solução ou problema? Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024;14:1-6 https://doi.org/10.25118/2763-9037.2024.v14.1325
Nos últimos anos, o Brasil experimentou um crescimento significativo no número de faculdades de medicina. O governo justifica essa expansão como uma resposta à demanda crescente por médicos em um país de grandes dimensões e população superior a 211 milhões de habitantes. Contudo, essa multiplicação levanta preocupações sobre a qualidade da formação médica e a real solução para os problemas de saúde pública. A má distribuição de médicos no Brasil é mais uma questão estrutural ligada à organização do sistema de saúde e à alocação de recursos, do que uma falta de profissionais. Além disso, a abertura de novas faculdades sem controle rigoroso de qualidade pode comprometer a excelência da formação médica. O crescimento exponencial do número de faculdades não garante uma distribuição equitativa de médicos ou melhoria na qualidade do atendimento. É essencial adotar uma abordagem estratégica para resolver a distribuição de médicos, investindo na gestão do sistema de saúde e infraestrutura adequada.
Palavras-chave: disparidades nos níveis de saúde, educação médica, faculdades de medicina, força de trabalho em saúde, sistemas de saúde, qualidade da saúde, acessibilidade aos serviços de saúde, saúde pública, alocação de recursos, desigualdade em saúde, treinamento médico.
In recent years, Brazil has seen a significant increase in the number of medical schools. The government justifies this expansion as a response to the growing demand for healthcare professionals in a country with over 211 million inhabitants. However, this proliferation raises concerns about the quality of medical education and the effectiveness of addressing public health issues. The uneven distribution of doctors in Brazil is more a structural issue related to the organization of the health system and resource allocation rather than a shortage of professionals. Furthermore, the creation of new medical schools without stringent quality controls may undermine the quality of medical training. The exponential growth in medical schools does not ensure equitable distribution of doctors or improvement in healthcare quality. A strategic approach is necessary to address physician distribution by investing in health system management and adequate infrastructure.
Keywords: health status disparities, medical education, medical schools, health workforce, health systems, healthcare quality, health services accessibility, public health, resource allocation, healthcare inequality, medical training.
En los últimos años, Brasil ha experimentado un aumento significativo en el número de facultades de medicina. El gobierno justifica esta expansión como una respuesta a la creciente demanda de profesionales de la salud en un país con más de 211 millones de habitantes. Sin embargo, esta proliferación plantea preocupaciones sobre la calidad de la educación médica y la efectividad en la resolución de problemas de salud pública. La distribución desigual de médicos en Brasil es más un problema estructural relacionado con la organización del sistema de salud y la asignación de recursos, que una escasez de profesionales. Además, la creación de nuevas facultades de medicina sin controles rigurosos de calidad puede socavar la calidad de la formación médica. El crecimiento exponencial en el número de facultades no garantiza una distribución equitativa de médicos ni una mejora en la calidad de la atención médica. Es necesario adoptar un enfoque estratégico para abordar la distribución de médicos mediante la inversión en la gestión del sistema de salud y en infraestructuras adecuadas.
Palabras clave: disparidades en el estado de salud, educación médica, facultades de medicina, recursos humanos en salud, sistemas de salud, calidad en la atención de salud, accesibilidad a los servicios de salud, salud pública, asignación de recursos, inequidad en salud, formación médica.
Nos últimos anos, o Brasil tem observado um aumento significativo no número de faculdades de medicina. Para se ter uma ideia, nas duas primeiras semanas de julho de 2024, o Ministério da Educação (MEC) deu permissão para a criação de 12 novos cursos de medicina, em cumprimento a decisões judiciais. Só nessas duas semanas, a quantidade de cursos de graduação médicas autorizadas ultrapassou todas as autorizações feitas em 2023.
O discurso governamental busca explicar essa expansão visando atender à demanda crescente por profissionais de saúde em um país de dimensões continentais e com uma população que ultrapassa a 211 milhões de habitantes, conforme estimativa do IBGE. No entanto, essa multiplicação de instituições de ensino médico levanta sérias preocupações quanto à qualidade da formação oferecida e à real solução dos problemas de saúde pública no país.
A principal justificativa para a abertura de novas faculdades de medicina reside na suposta escassez de médicos, especialmente em regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos. Contudo, uma análise mais aprofundada revela que a má distribuição de médicos no Brasil não decorre da falta de profissionais, mas sim da ausência de condições de trabalho e do menor Índice de Desenvolvimento Humano das áreas mais distantes se comparado com os encontrados em capitais e grandes centros.
Merece reforço, a má distribuição de médicos é, de fato, uma questão estrutural que está relacionada à forma como o sistema de saúde é organizado e como os recursos são alocados. Portanto, envolve tanto aspectos qualitativos quanto quantitativos, não se restringindo apenas à quantidade existente de médicos.
Regiões distantes e carentes sofrem com a precariedade, de um lado, das condições técnicas para o exercício profissional ético da medicina e, de outro, da infraestrutura e serviços a esta associados, como condições habitacionais, transporte e logística, geração e transmissão de energia, saneamento básico e telecomunicações, que possuem grande importância para o desenvolvimento social e econômico desses territórios. Em última análise, a infraestrutura garante o bem-estar da população e assegura as condições básicas para obtenção de uma qualidade de vida digna.
Além disso, e não considerando aqui os reconhecidos problemas de gestão do sistema público de saúde no alcance de maior eficiência, a falta de um plano nacional de carreira, cargos e salários para profissionais da saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) torna mais grave a situação. Sem uma estrutura que garanta progressão na carreira, estabilidade e remuneração adequada, torna-se inviável atrair e fixar profissionais em locais de difícil acesso. Um plano de carreira bem estruturado, a exemplo de outras carreiras de estado, seria capaz de distribuir médicos de forma mais equitativa pelo território nacional, oferecendo-lhes condições de trabalho e incentivando sua permanência em regiões que atualmente são negligenciadas.
A abertura de novas faculdades de medicina sem um controle rigoroso de qualidade é um tema que precisa ser abordado com seriedade pelos órgãos reguladores e instituições de ensino. Muitas dessas instituições carecem de condições adequadas ao ensino, como estrutura física, hospitais-escola bem equipados, laboratórios modernos, corpo docente competente e qualidade dos estágios práticos. A formação médica exige um ambiente de aprendizado que simule a prática profissional, com acesso a casos clínicos diversificados e supervisão de profissionais experientes. Sem esses elementos, a excelência da educação é comprometida, resultando na formação de médicos sem o conhecimento e experiência exigidos para enfrentar os desafios da prática clínica, realidade que coloca em risco a qualidade da assistência e a própria saúde da população.
Ademais, o processo de expansão das faculdades de medicina, muitas vezes, atende a interesses políticos e econômicos, em vez de priorizar a qualidade da educação e, por extensão, a própria qualidade do serviço médico. A abertura de cursos sem levar em conta critérios objetivos e a avaliação cuidadosa das necessidades regionais e das capacidades institucionais pode levar a um excesso de profissionais em áreas já saturadas, enquanto regiões realmente necessitadas continuam desassistidas.
Para contextualizar, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), são 575.930 médicos ativos, uma das maiores quantidade do mundo, resultando em uma proporção de 2,81 médicos por mil habitantes, a maior já registrada e que coloca o Brasil a frente dos Estados Unidos, Japão e China. Com um crescimento exponencial, o número de faculdades de medicina no Brasil passou de 78 em 1990 para as atuais 389, a segunda maior quantidade do mundo, ficando somente atrás da Índia, que possui uma população mais de seis vezes maior. Nos últimos dez anos, foram abertas 190 escolas médicas, número igual ao de escolas abertas ao longo de dois séculos.
Como se vê, o Brasil possui uma proporção de faculdades de medicina significativamente maior do que a de muitos países desenvolvidos, sem que isso se traduza necessariamente em uma distribuição equitativa de médicos ou em uma melhoria na qualidade do atendimento à saúde.
Em direção oposta ao que vem sendo sustentado, a abertura de novos cursos de medicina não são a garantia de permanência de seus formandos nas regiões sede destas faculdades. O mero aumento de faculdades de medicina no Brasil é uma “proposta de solução” simplista para um problema complexo. Para enfrentar os problemas da distribuição de médicos no país, evitando-se a migração e concentração destes profissionais nos grandes centros urbanos é crucial adotar uma abordagem responsável e estratégica.
Em vez de unicamente aumentar o número de faculdades de medicina, é necessário investir na melhoria da gestão do sistema de saúde, aumentar o financiamento do SUS, garantir a construção e manutenção de infraestruturas de saúde adequadas, a oferta de segurança, suporte profissional, e remuneração justa. Somente assim será possível garantir uma assistência médica de qualidade para toda a população brasileira, independentemente de sua localização geográfica.
Muitos argumentam que, na verdade, virou um grande negócio, bancado na sua maioria pelo estado que “financia” os estudos e depois isenta o pagamento das mensalidades, criando um maior custo do que seria a criação de escolas públicas e serviços de saúde públicos. Se cada faculdade de medicina tivesse a obrigação de criar serviços para a formação, aí sim seria um início de demonstração de interesse na saúde pública e no cuidado da população. Como está, é apenas o atendimento dos interesses dos empresários da educação.
1. Pacheco F. MEC Autoriza 15 novos cursos de medicina em julho de 2024 (atualizado). São Paulo: Resmedica; 2024.
2. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estimativas da população. Rio de Janeiro: IBGE; [citado em 14 ago 2024]. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9103-estimativas-de-populacao.html
3. Conselho Federal de Medicina. Demografia médica. Brasília: CFM; c2023. https://observatorio.cfm.org.br/demografia/#apresentacao