methodol Homenagem a Juliano Moreira: sinônimo de representatividade e vanguardismo
Homenagem

Homenagem a Juliano Moreira: sinônimo de representatividade e vanguardismo

Homenaje a Juliano Moreira: sinónimo de representación y vanguardia

Psicofobia: cómo afrontar los trastornos mentales y el estigma en Brasil

1. Eduardo Morales Sousa
e-mail orcid Lattes

2. Audrey Ribeiro Fischer
orcid Lattes

Filiação dos autores:

1, 2 [Especializandos, Psiquiatria, Universidade Federal Fluminense, UFF, Niterói, RJ, Brasil]

Editor-chefe responsável pelo artigo: Tânia Corrêa de Toledo Ferraz Alves

Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: Sousa EM [1,13,14], Fischer AR [13,14]

Conflito de interesses: declaram não haver

Fonte de financiamento: declaram não haver

Parecer CEP: não se aplica

Recebido em: 27/08/2024 | Aprovado em: 16/10/2024 | Publicado em: 23/10/2024

Como citar: Sousa EM, Fischer AR. Homenagem a Juliano Moreira: sinônimo de representatividade e vanguardismo. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024;14:1-13. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2024.v14.1329

Resumo

Por meio de homenagens, podemos resgatar histórias de personalidades ilustres e ressaltar marcos do passado, seu impacto no presente e torná-los como inspiração para o futuro. Neste sentido, Juliano Moreira se destaca como um dos expoentes que jamais deve cair no ostracismo: responsável por alicerces da psiquiatria brasileira, seu engajamento e pioneirismo foram feitos em uma época ainda mais hostil do que os tempos atuais. Sendo a medicina um curso historicamente elitizado, pessoas de origem socioeconômica humilde e até mesmo negros tiveram seu acesso dificultado, não tendo as mesmas oportunidades que os demais. Indo além, Juliano não só traz uma necessária representatividade, mas sua bagagem e história refutando o racismo científico que, à época, pregava uma “inferioridade biológica” a raças humanas. Passados mais de 90 anos de sua morte, observamos diversos avanços em nossa sociedade e na própria psiquiatria, sustentados em grande parte na luta de agentes como Juliano, pioneiro na reforma psiquiátrica brasileira e no combate à discriminação, sendo esta responsável, por exemplo pelo tratamento diferenciado empregado à época a pessoas abastadas quando comparadas a pacientes sem posses.

Palavras-chave: psiquiatria, história, racismo científico, racismo.

Abstract

Through homages, we can rescue stories of illustrious personalities and highlight milestones from the past, their impact on the present and use them as inspiration for the future. In this sense, Juliano Moreira stands out as one of the exponents who should never be ostracized: responsible for the foundations of Brazilian psychiatry, his engagement and pioneering spirit were made in an era even more hostile than current times. As medicine is a historically elite course, people from humble socioeconomic backgrounds and even black people have had difficult access, not having the same opportunities as others. Going further, Juliano not only brings necessary representation, but his background and history refuting scientific racism which, at the time, preached “biological inferiority” to human races. More than 90 years after his death, we have observed several advances in our society and in psychiatry itself, largely supported by the work of agents like Juliano, a pioneer in Brazilian psychiatric reform and in the fight against discrimination, which is responsável, for example, for the treatment difference used at the time for wealthy people when compared to patients without means.

Keywords: psychiatry, history, scientific racism, racism.

Resumen

A través de los homenajes podemos rescatar historias de personajes ilustres y resaltar hitos del pasado, su impacto en el presente y utilizarlos como inspiración para el futuro. En este sentido, Juliano Moreira se destaca como uno de los exponentes que nunca debe ser marginado: responsable de las bases de la psiquiatría brasileña, su compromiso y espíritu pionero se hicieron en una época aún más hostil que la actual. Como la medicina es una carrera históricamente de élite, personas de estratos socioeconómicos humildes e incluso personas de raza negra han tenido difícil acceso, al no tener las mismas oportunidades que los demás. Yendo más allá, Juliano no sólo aporta la representación necesaria, sino también sus antecedentes e historia refutando el racismo científico que, en su momento, predicaba la “inferioridad biológica” a las razas humanas. A más de 90 años de su muerte, hemos observado varios avances en nuestra sociedad y en la propia psiquiatría, en gran medida apoyados por la lucha de agentes como Juliano, pionero en la reforma psiquiátrica brasileña y en la lucha contra la discriminación, que es responsable, por ejemplo , por la diferencia de tratamiento utilizada en ese momento para las personas ricas en comparación con los pacientes sin medios .

Palabras clave: psiquiatría, historia, racismo científico, racismo.



história pessoal

Contar a história de Juliano Moreira é, em partes, fazer um trabalho de resgatar informações esparsas e por vezes conflituosas. Possivelmente por não ter tido o merecido reconhecimento em vida, na proporção em que merecia, hoje buscamos com recortes ilustrar a trajetória de um pioneiro não só na psiquiatria, como na ciência como um todo do Brasil. As divergências começam já com sua data de nascimento: em comum entre referências estão dia e mês de nascimento, 06 de janeiro. No entanto, quando se trata do ano, não há clareza absoluta: boa parte das referências indicam ter nascido em 1872, mas outras, por sua vez, indicam o ano de 1873.

Juliano Moreira nasceu na freguesia da Sé da cidade de São Salvador. Filho de Galdina do Amaral, mulher negra, pobre e mãe solteira, que descendia de escravos e criou seu filho provavelmente trabalhando como doméstica. Seu pai, por sua vez, era um português que não assumiu compromisso com sua mãe e sequer fez parte de sua criação, surgindo em sua vida apenas anos após seu nascimento. Seu padrinho, escolhido por Galdina, foi Luís Adriano Alves de Lima Gordilho, seu patrão. À época, o compadrio era uma forma de reproduzir a tradição africana de famílias extensas, bem como um instrumento para obtenção ou manutenção de liberdade. Luís Adriano, condecorado como segundo barão de Itapuã pouco após o nascimento de Juliano, era médico e professor na Faculdade de Medicina da Bahia. Possivelmente este vínculo com seu padrinho foi uma das inspirações para que Juliano optasse por seguir a carreira médica.

Formação acadêmica e especialização

Considerado como prodígio, entrou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 14 anos. Manteve uma fama de aluno empenhado e já durante a graduação iniciou a fundação de associações científicas voltadas para pesquisa. Sua tese de conclusão do curso, quando tinha 18 anos, sobre a etiologia da sífilis foi pioneira para a refutação da ideia que a malignidade da sífilis estaria ligada a "raças humanas" específicas. Com esse questionamento, Juliano estava contestando a pseudociência que considerava determinado grupo de seres humanos como superiores geneticamente. Seu trabalho conta com citações em sete línguas diferentes, foi traduzido em diversos países e acabou se tornando referência internacional no estudo da sífilis. Nesta tese, demonstra já sua visão vanguardista, abordando a conceituação racial do ser humano.

Em suas palavras, questionou da seguinte forma: “Quantas são as raças? Onde termina a raça branca? Onde começa a amarella? Onde acaba? Onde começa a preta? [...]”. Outros temas com os quais Juliano demonstrou afinidade e empenho durante seu início de carreira foram afecções dermatológicas e infecciosas como hanseníase, leishmaniose cutâneo-mucosa e ainhum, sendo que esses trabalhos resultaram em contribuições científicas originais.

Em especial no que se refere ao ainhum, afecção que acometia em especial a população negra, a atenção dada por Moreira à patologia demonstrava seu olhar especial para populações marginalizadas e negligenciadas historicamente. Pouco após sua formatura, chegou a ser designado para combater uma epidemia de Malária na região de Jacobina, Bahia, reforçando sua afinidade com o sanitarismo.

Seu primeiro emprego em contato com a saúde mental foi em 1893, já alguns anos após sua graduação, como professor assistente da Cadeira de Psiquiatria e Moléstias Nervosas. Em 1894 obteve sua primeira publicação na área psiquiátrica na Gazeta Médica de Notícias com o texto “Assistência dos Alienados na Bahia”. Já em 1895, Juliano fez parte da comissão que elaborou um crítico relatório sobre o Asilo João de Deus, exigindo a criação de um novo modelo de asilo, o qual em 1936 foi renomeado como Hospital Juliano Moreira.

Experiência Profissional

Em 1896, ao se candidatar para o concurso como membro da Cadeira de Doenças Nervosas e Mentais, Juliano Moreira se deparou com a dificuldade de ser o único candidato negro a concorrer à vaga. Além disso, a banca examinadora era composta por antigos senhores de escravos que mantinham posturas racistas. Juliano contou com o apoio de colegas e estudantes que fiscalizaram todas as etapas do processo e, após receber nota máxima em todas, foi aprovado para o cargo em primeiro lugar.

Seu amigo Afrânio Peixoto havia mobilizado acadêmicos para que assistissem ao concurso, uma vez que o processo era aberto ao público e mesmo os exames escritos eram publicizados. Com o resultado do processo seletivo, os acadêmicos presentes se regozijaram. Em seu discurso de posse do cargo, Juliano fez questão de pronunciar uma mensagem para a elite racista e escravocrata que na época ocupava parte das Cátedras da Faculdade de Medicina da Bahia. Isso nos possibilita o entendimento de como Juliano entendia a si próprio e sua inserção social e como, para ele, a cor da sua pele não diminuiria a importância da Faculdade que o recebeu em seu corpo docente. Apesar de sua conquista, o ambiente acadêmico foi hostil com Moreira, demonstrando como o racismo ainda seria uma questão presente em seu cotidiano. Os campi baianos fecharam suas portas para Juliano, fazendo com que se mudasse para o Rio de Janeiro.

Ao se estabelecer na cidade, montou um consultório no bairro de Botafogo. A partir daí, Juliano se dedicou assiduamente em diversos projetos na área de saúde mental, participando inclusive de diversos congressos internacionais e chegando à diretoria do Hospício Nacional de Alienados em 1903 (à época superlotado e sem condições de oferecer tratamento adequado aos doentes). Pairavam denúncias de graves irregularidades na assistência prestada aos pacientes no Hospício Nacional de Alienados, culminando com a instalação de uma comissão de inquérito pelo Ministério da Justiça (órgão ao qual hospício era subordinado) em fins de 1902, e à demissão do então diretor Antonio Dias Barros. Assumindo a direção, tinha como objetivo obter do poder legislativo verba suficiente para a construção de um novo asilo-colônia, onde fossem atendidas “todas as exigências da psiquiatria moderna”. Entretando, entraves financeiros fizeram com que gerisse o dinheiro priorizando reformas inadiáveis no hospício num primeiro momento.

Conquistas e reconhecimentos

Como diretor do Hospício Nacional de Alienados, Juliano teve uma participação efetiva no Decreto Legislativo 1.132, promulgado em 22/12/1903, que tinha como objetivo regulamentar a assistência aos alienados, marcando o momento em que a figura do psiquiatra ganhou autonomia e autoridade dos assuntos relacionados aos pacientes. Isso marcou um incremento das receitas dessa instituição, possibilitando que Juliano implementasse uma série de mudanças.

Uma das mudanças propostas foi a setorização do local em diferentes pavilhões, com setores específicos por sexo, área infantil e uma área para pacientes que também portavam doenças infecciosas. Deu especial atenção às medidas que trouxessem maior humanização ao tratamento empregado aos pacientes, bem como modernização da forma como a psiquiatria era abordada no Brasil.

Dentre as intervenções sob direção de Juliano, podemos destacar a instalação de laboratórios de anatomia patológica e de bioquímica no hospital; remodelação do corpo clínico, com entrada de psiquiatras/neurologistas e outros especialistas (de clínica médica, pediatria, oftalmologia, ginecologia e odontologia); a abolição do uso de coletes e camisas de força; a retirada de grades de ferro das janelas; a preocupação com a formação dos enfermeiros; o grande cuidado com os registros administrativos, estatísticos e clínicos, entre outros. Os laboratórios, implementados em 1906, realizavam as primeiras punções lombares e os primeiros exames citológicos de líquido céfalo-raquidiano, com o objetivo de diagnosticar casos de tabes dorsalis, demência paralítica, sífilis cerebral e meningites.

À ocasião, Juliano desistiu de ocupar a sala luxuosa destinada ao diretor no segundo andar e fez uma sala simples no térreo, onde estava sempre de portas abertas, atendendo a todos sem horário marcado ou agendamentos.

Nessa época como diretor do hospício, apesar de não ser professor, recebeu vários internos de medicina que vieram a se tornar grandes nomes no Brasil nas mais diversas áreas, como por exemplo Afrânio Peixoto, Antonio Austragésilo, Franco da Rocha, Ulisses Viana, Henrique Roxo,

Fernandes Figueira, Miguel Pereira, Gustavo Riedel, Heitor Carrilho, Faustino Monteiro Esposel, Adauto Junqueira Botelho, dentre outros. Inclusive, junto com Afrânio Peixoto, foi responsável pela publicação do primeiro periódico nacional especializado em psiquiatria, chamado Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, que contribuiu como um meio de articulação política e científica no campo da psiquiatria nacional.

Juliano fez várias viagens ao exterior e recebeu diversas honrarias em diferentes países, sendo coordenador e presidente de mais de 12 congressos internacionais. Recebeu a Ordem do Tesouro Sagrado do imperador japonês, que era destinada aos consagrados da ciência mundial, por sua luta contra o preconceito da época referente a imigração sino-japonesa, no Brasil referidos como “perigo amarelo”, além de várias medalhas científicas atribuídas por universidades ao redor do mundo.

Foi também o único psiquiatra das américas a ser citado na galeria dos proeminentes psiquiatras pela Revista Psychiatrische, Neurologische Wochenschrift (nº. 27 de 03 de outubro de 1910). Apesar do notório reconhecimento, Juliano manteve sua simplicidade e humildade.

Moreira também se dedicou a escrever resenhas biográficas ou necrológios de ilustres contemporâneos (Pasteur, Magnan, Virchow, Silva Lima, Kraepelin, entre outros), bem como um estudo sobre os médicos holandeses Willem Pies (Piso) e George Marcgrave, apresentado em sua posse como sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em outubro de 1917.

Impacto na área

Juliano, que é considerado por muitos como o pai da psiquiatria no Brasil, teve como grande obra a reforma psiquiátrica brasileira, influenciada pela troca de conhecimentos com o alemão Emil Kraepelin. Em seu artigo “A paranóia e as síndromes paranóides”, Juliano demonstra e delimita suas posições teóricas e seu alinhamento com Kraepelin, modernizando a visão da psiquiatria no Brasil. Reforçando o impacto de sua relação com Kraepelin, uma classificação de doenças mentais proposta por Juliano (à luz da influência de Kraepelin) foi adotada até por volta da década de 1960.

No Brasil havia um predomínio da visão do modelo francês de psiquiatria, sem levar em consideração diferenças culturais; a proximidade de Moreira e Kraepelin foi capaz de instaurar uma visão de psiquiatria transcultural no Brasil, sendo mais adequada às especificidades do país. Como fruto de viagens à Europa, esteve em contato com várias clínicas psiquiátricas, que na época estavam iniciando mudanças significativas no tratamento dado aos doentes mentais.

O fato de ser fluente em inglês, português, espanhol, francês e alemão provavelmente o auxiliou em suas viagens. Esta experiência teve grande impacto na forma como Juliano passou a pensar e tratar a loucura, levando ao início da abolição do uso de grades e camisas de força nos manicômios, além de mudanças na estrutura arquitetônica e higiene local. Uma das mudanças foi a criação do Pavilhão Seabra, que era um prédio amplo contendo diversos equipamentos, provenientes da Europa, que eram parte das oficinas de “laborterapia”. Essas oficinas abrangiam as áreas de carpintaria, sapataria, marcenaria, tipografia e encadernação, pintura, entre outras, que tinham a função de auxiliar os pacientes na recuperação e traziam alguma renda. Também foi responsável por transmitir música nos corredores como uma forma de terapia, bem como trouxe professores e cientistas para promover oficinas de artes, numa época em que pouco se discutia sobre temas que hoje são englobados pela terapia ocupacional.

Juliano também se empenhou em fazer uma pesquisa e compilação sobre a história da assistência em psiquiatria no Brasil. Em seu ensaio “Notícia sobre a evolução da assistência a alienados no Brasil”, publicado em 1905, narra parte do período colonial e relata minuciosamente o processo que levou à criação do primeiro hospício de alienados do país, o Hospício Pedro II (fundado em 1841, inaugurado em 1852, renomeado Hospício Nacional em 1890), descrevendo sua história até 1904. Também foi responsável por compilar as informações, ainda que escassas, sobre a história da assistência em vários estados brasileiros: São Paulo, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, Pará, Amazonas, Maranhão, Ceará, Paraíba, Alagoas, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Goiás, Piauí, Mato Grosso.

Uma curiosidade interessante ocorreu em 1914. O renomado escritor brasileiro Lima Barreto, que na época ainda não tinha o reconhecimento merecido por suas obras, enfrentou uma séria crise de depressão e alcoolismo o que o fez ser encaminhado para o Hospício Nacional dos Alienados. Juliano Moreira, a essa época, já possuía o cargo de diretor do Hospício e foi descrito por Lima Barreto como uma excelente e boa pessoa e foi caracterizado como bondoso e empático. Além disso, a humanidade com que tratava os homens e mulheres tachados de loucos era reconhecida

não só por seus pacientes, mas também por seus pares, que o viam como mentor.

Moreira foi também diretamente responsável pela criação do primeiro manicômio judiciário do país (hoje chamados de Casas de Custódia). Tendo se movimentado em 1919 para viabilizar este projeto, Juliano persuadiu o presidente em exercício à época, Epitácio Pessoa, por intermédio de seu ministro Alfredo Pinto. Dois anos após esta movimentação inicial, o projeto de um local específico destinado para o atendimento de uma população com suas particularidades e vulnerabilidades se concretizou. Assim, em 1921, Heitor Carrilho, discípulo de Juliano, assumiu a direção do primeiro manicômio judiciário do país.

Juliano teve um importante papel contra o racismo científico. Moreira chegou a ter um desentendimento com o médico Nina Rodrigues, que havia sido seu professor e posterior colega na Faculdade como docentes. A desavença veio em resposta a uma discussão de ambos sobre um caso de paranoia em um jovem mestiço, quando Nina Rodrigues atribuía a doença mental do paciente à sua condição de mestiço. Juliano foi firme apresentando sua discordância e qualificando como superficial o exame feito pelo colega. Com essa discordância, Juliano sabia que estava rechaçando todo um modelo explicativo que era o mais aceito no meio científico e apesar de parecer uma discordância banal foi muito importante como refuta ao racismo que imperava no discurso médico da época.

Dentre as diversas personalidades que tiveram contato com Juliano Moreira, destacam-se ainda Albert Einstein, que fez uma visita ao Brasil em 1925 e foi recebido com um discurso de recepção de Juliano na Academia Brasileira de Ciências, de onde era presidente. Einstein, que já era uma estrela mundial, ficou impressionado com o discurso de Juliano e, quebrando o protocolo, aceitou os convites de Juliano para visitar o Hospital Nacional dos Alienados (onde ficou particularmente interessado no setor de “laborterapia”) e para almoçar em sua casa.

Contrariando as expectativas de servir comida alemã nesse almoço, Juliano, juntamente com sua esposa, ofereceram Vatapá, uma comida afro-baiana, que foi citada por Einstein como uma “comida brasileira com muita pimenta”. Além disso, após seu contato com Juliano, Einstein descreveu em seu diário que o diretor era "mulato e uma pessoa especialmente virtuosa". Santos Dumont também prestou uma visita a Juliano no mesmo ano, em seu consultório particular. Não há detalhes sobre quais temas abordaram neste encontro, nem mesmo se tratava-se de uma relação de médico/paciente, uma vez que se especula que Santos Dumont era portador de transtorno afetivo bipolar. Tais visitas reforçam o prestígio que Juliano Moreira gozava entre seus pares e outras personalidades reconhecidamente brilhantes.

Outro dado conhecido, diz respeito a Juliano ser o primeiro pesquisador latino-americano a discutir a psicanálise. Apesar de não ser psicanalista, após o lançamento dos livros de Freud, por entender alemão, Juliano já discutia os conteúdos dos livros no asilo São João de Deus, na Bahia e foi sensível o suficiente para entender a importância das contribuições de Freud para a psiquiatria.

O legado de Juliano também foi precursor da arquitetura de vários locais importantes da cidade do Rio de Janeiro. Sua casa, que era localizada próxima do hospício, juntamente com as casas dos médicos que lá trabalhavam e do administrador do hospício hoje estão preservadas e abrigam a reitoria, vice-reitoria e pro-reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O complexo do hospício, que na direção de moreira possuía uma estrutura hospitalar com laboratórios, serviços terapêuticos e salas de cirurgia, juntamente com um parque arborizado se tornou atualmente propriedade da Universidade Federal do Rio de Janeiro que abriga no que sobrou do complexo, vários cursos de ensino superior diferentes. Além disso, o local em que hoje conhecemos como Instituto Municipal Philippe Pinel (referência em ensino e pesquisa psiquiátrica no Rio de Janeiro) teve início com o consentimento de Juliano a partir de uma área dedicada para pacientes epilépticos e era um serviço aberto para doenças venéreas que posteriormente se tornou um hospital para neurosífilis. Para atender às demandas, em 1968 foi reformado com parte da sua estrutura demolida e modernizada.

Juliano Moreira teve uma vida pessoal discreta, foi tratando de uma piora na sua tuberculose em um hospital no Cairo no Egito que conheceu a enfermeira alemã Augusta Peick, por quem se apaixonou. Augusta foi a única mulher conhecida na vida de Juliano e embora ela o acompanhasse em seus compromissos em eventos científicos, sociais e viagens internacionais, sabe-se muito pouco sobre o cotidiano deles. O casal não teve filhos, mas ao que tudo indica tiveram uma vida feliz e Juliano apesar

de caracterizar a esposa como uma mulher áspera, a taxava como uma esposa dedicada. Como meio de diversão, Juliano era assíduo e muito interessado nos espetáculos das companhias líricas, apreciava os filmes de desenho e frequentava espetáculos teatrais e circenses, sendo admirador do palhaço famoso Benjamim Oliveira.

Conclusão

Por quase 30 anos, Juliano esteve à frente do Hospício Nacional, lutando para a melhoria do tratamento psiquiátrico das mais diversas formas. Também contribuiu de maneira importante para a formação dos principais alienistas do Brasil, bem como com os principais periódicos de publicações científicas do país, em especial sobre temas psiquiátricos. Durante sua vida, defendeu que as mazelas sociais como racismo e desigualdade econômica eram responsáveis por boa parte das doenças mentais. Juliano refutava argumentos utilizados por alguns médicos à época de que as diferentes raças humanas tinham propensões distintas tanto para cometer crimes quanto para determinadas doenças (sobretudo a loucura).

Juliano era portador crônico de tuberculose e em decorrência da doença, em 1931 começou a diminuir suas obrigações e se recolher. Era assistido pelo médico Miguel Couto, que o encaminhou para a serra de Petrópolis.

Faleceu em 1933 aos 61 anos decorrente da tuberculose e, sendo conhecido não somente pela sua genialidade como também por sua bondade, foi velado na capela do Hospital da Praia Vermelha e teve sua despedida composta por uma pequena multidão com um grande cortejo atravessando as ruas de Botafogo em direção ao cemitério São João Batista. Sua morte chegou a ser noticiada em periódicos brasileiros e internacionais.

Os frutos de sua luta são vivenciados ainda hoje em cada ato de bondade e em cada avanço na área psiquiátrica. Da mesma forma, seu legado está em constante ressignificação e sendo impactado por diversas demandas, inclusive da sociedade.

Como exemplo, o legado da introdução de estabelecimentos para atendimento da população privada de liberdade pelo judiciário, obra da sensibilidade ao tema de Juliano, esteve em debate. Atualmente conhecidas como Casas de Custódia, as instituições que carregam o fruto do trabalho do pai da psiquiatria brasileira tiveram ordens para que encerrassem suas atividades, após decisão do Conselho Nacional de Justiça. Juliano era contra os termos pejorativos “maluco” e “doido”, combateu seu uso veementemente e afirmava que a maioria dos doentes mentais estava fora dos hospitais e sanatórios. Para além de avanços na parte acadêmica, a contribuição de Juliano para a sociedade se dá também pelo exemplo de ser humano virtuoso, de uma sensibilidade ímpar, vanguardista e um possível modelo a ser seguido por tantos que almejam condições dignas de tratamento a qualquer pessoa.

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Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024