Filiação dos autores:
1 Graduanda, Medicina, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba, PR, Brasil]
2, 3 [Professor de Psiquiatria, Medicina, Escola de Medicina e Ciências da Vida, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba, PR, Brasil]
Editor-chefe responsável pelo artigo: Alexandre Martins Valença
Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: Barros LG [1, 2, 5, 6, 7, 13, 14], Quidigno EA [10, 13, 14], von der Heyde MD [1, 6, 10, 13, 14]
Conflito de interesses: declaram não haver
Fonte de financiamento: declaram não haver
Parecer CEP: Complexo Hospitalar do Trabalhador, CEPSH-SESA/HT, PR, CAAE n° 70235123.0.0000.0020. Parecer n. 6.134.965
Recebido em: 13/10/2024 | Aprovado em: 09/12/2024 | Publicado em: 21/01/2025
Como citar: Barros LG, Quidigno EA, von der Heyde MD. Prevalência de transtornos psiquiátricos em pessoas vivendo com HIV em uso de terapia antirretroviral: um estudo transversal. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2025;15:1-19. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2025.v15.1359
Introdução: o desenvolvimento da terapia antirretroviral mudou o curso da infecção pelo HIV, apesar disso, o impacto psicossocial desse diagnóstico ainda influencia na saúde mental das pessoas que vivem com o vírus. Objetivos: avaliar a prevalência de transtornos psiquiátricos em pacientes soropositivos. Materiais e Métodos: estudo transversal a partir das entrevistas com pacientes soropositivos acompanhados em um ambulatório de infectologia, em Curitiba (PR). Foram coletados dados epidemiológicos e clínico-laboratoriais, e aplicados os questionários Mini International Neuropsychiatric Interview (M.I.N.I) e Questionário Breve da Qualidade de Vida da OMS (WHOQOF-abreviado). O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas, com CAAE n° 70235123.0.0000.0020 e parecer de aprovação de número 6.134.965. Resultados: participaram 69 pacientes, cuja idade média foi de 48 ± 12,4 anos, com predomínio do sexo masculino (50,7%). Desses, 33 (47,8%) apresentaram algum transtorno psiquiátrico, sendo os transtornos mais prevalentes o transtorno depressivo e agorafobia. Nesse grupo de pacientes, percebeu-se um tempo menor que 12 anos de diagnóstico da infecção pelo HIV (p=0,026), maior uso de Efavirenz (p=0,047) e Tenofovir (p=0,048). Ainda, percebe-se uma pior avaliação da qualidade de vida, especialmente na avaliação geral, e nos domínios psicológico, social e ambiental, quando comparados ao grupo que não apresentou acometimento da saúde mental pelo questionário M.I.N.I. Outros parâmetros avaliados não parecem ter papel importante na gênese de transtornos psiquiátricos nesse grupo de pacientes. Conclusão: pacientes com HIV tem alta prevalência de doenças de ordem psíquica, e apresentam particularidades que influenciam em seu desenvolvimento, logo, é fundamental a avaliação integral desses pacientes, e a busca ativa por queixas de saúde mental.
Palavras-chave: síndrome de imunodeficiência, saúde mental, transtornos psiquiátricos, transtornos mentais.
Introduction: The development of antiretroviral therapy has changed the course of HIV infection; however, the psychosocial impact of this diagnosis still influences the mental health of people living with the virus. Objectives: To assess the prevalence of psychiatric disorders in HIV-positive patients. Materials and Methods: This is a cross-sectional study based on interviews with HIV-positive patients monitored at an infectious disease outpatient clinic in Curitiba (PR). Epidemiological and clinical-laboratory data were collected, and the Mini International Neuropsychiatric Interview (M.I.N.I.) and the WHOQOL-Bref (WHO Brief Quality of Life Questionnaire) were administered. The study was submitted and approved by the Research Ethics Committee, with CAAE no. 70235123.0.0000.0020 and approval opinion number 6.134.965. Results: 69 patients participated, with a mean age of 48 ± 12.4 years, predominantly male (50.7%). Of these, 33 (47.8%) had some psychiatric disorder, with depressive disorder and agoraphobia being the most prevalent. This group of patients had been diagnosed with HIV infection for less than 12 years (p=0.026), and had higher use of Efavirenz (p=0.047) and Tenofovir (p=0.048). Additionally, a worse quality of life was observed, especially in the general evaluation and in the psychological, social, and environmental domains, compared to the group without mental health disorders according to the M.I.N.I. questionnaire. Other parameters evaluated did not seem to play a significant role in the development of psychiatric disorders in this patient group. Conclusion: HIV patients have a high prevalence of psychiatric disorders and exhibit specific factors that influence their development, making comprehensive evaluation and active search for mental health complaints essential.
Keywords: immunodeficiency syndrome, mental health, psychiatric disorders, mental disorders.
Introducción: El desarrollo de la terapia antirretroviral cambió el curso de la infección por VIH; sin embargo, el impacto psicosocial de este diagnóstico sigue influyendo en la salud mental de las personas que viven con el virus. Objetivos: Evaluar la prevalencia de trastornos psiquiátricos en pacientes seropositivos. Materiales y métodos: Estudio transversal a partir de entrevistas con pacientes seropositivos atendidos en una clínica de infectología en Curitiba (PR). Se recopilaron datos epidemiológicos y clínico-laboratoriales, y se aplicaron los cuestionarios Mini International Neuropsychiatric Interview (M.I.N.I) y el Cuestionario Breve de Calidad de Vida de la OMS (WHOQOL-abreviado). El estudio fue presentado y aprobado por el Comité de Ética en Investigación, con CAAE no. 70235123.0.0000.0020 y dictamen de aprobación número 6.134.965. Resultados: Participaron 69 pacientes, con una edad promedio de 48 ± 12,4 años, con predominancia del sexo masculino (50,7%). De estos, 33 (47,8%) presentaron algún trastorno psiquiátrico, siendo los trastornos más prevalentes el trastorno depresivo y la agorafobia. En este grupo de pacientes, se observó un tiempo de diagnóstico de la infección por VIH menor de 12 años (p=0,026), un mayor uso de Efavirenz (p=0,047) y Tenofovir (p=0,048). Además, se percibe una peor evaluación de la calidad de vida, especialmente en la evaluación general y en los dominios psicológico, social y ambiental, en comparación con el grupo que no presentó problemas de salud mental según el cuestionario M.I.N.I. Otros parámetros evaluados no parecen desempeñar un papel importante en la génesis de los trastornos psiquiátricos en este grupo de pacientes. Conclusión: Los pacientes con VIH tienen una alta prevalencia de enfermedades de origen psíquico y presentan particularidades que influyen en su desarrollo. Por lo tanto, es fundamental la evaluación integral de estos pacientes y la búsqueda activa de quejas relacionadas con la salud mental.
Palabras clave: síndrome de inmunodeficiencia, salud mental, trastornos psiquiátricos, trastornos mentales.
Na década de 80, os primeiros casos da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) foram documentados no Morbidity and Mortality Weekly Report (1981). Naquela época, ainda não se havia identificado o agente etiológico da síndrome. Os registros se limitavam a homens jovens, anteriormente saudáveis, com orientação sexual homoafetiva, que rapidamente evoluíam para óbito devido a complicações pulmonares oportunísticas .
Posteriormente, foi constatado pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) que a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) representa a fase avançada da infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV). Naquele momento, contudo, não existia um tratamento eficaz para controlar a infecção, resultando em um aumento exponencial no número de pacientes infectados, bem como na quantidade de pessoas que faleciam devido à síndrome .
Ao mesmo tempo, o movimento da mídia de outras instituições disseminava a desinformação, o preconceito e o medo, colaborando com a recriminação e estigmatização dos pacientes infectados. Ilustrando esse contexto, o documentário “Carta para além dos muros”, original da Netflix, apresenta uma um trecho de uma reportagem, em que a repórter afirma que os pacientes soropositivos requerem isolamento social, e que para entrar em contato com eles, era necessário uso de equipamentos de proteção individual, tais como máscaras, toucas e aventais. Esse trecho explicita o desconhecimento a respeito das formas de transmissão da doença, e ainda reforça o estigma enfrentado por esses pacientes .
Atualmente, a terapia antirretroviral permite que os pacientes alcancem carga viral indetectável, impedindo o desenvolvimento da AIDS e diminuindo substancialmente as chances desse paciente transmitir a doença. Assim, a infecção é considerada uma doença crônica, com pouca repercussão prática na saúde dos doentes, já que, na vigência do tratamento adequado e com carga viral indetectável, não há desenvolvimento de doenças oportunistas, e ainda o paciente se torna intransmissível .
Apesar do melhor manejo da infecção, que influencia diretamente na sobrevida e na qualidade de vida dos pacientes, o impacto psicossocial associado ao diagnóstico do HIV ainda é significativo. E parte disso é atribuído ao contexto em que a epidemia de AIDS emergiu. As palavras de Gabriel Estrela, um jovem vivendo com HIV e idealizador do projeto Boa Sorte, destacam como o contexto histórico exerce influência na vida das pessoas que convivem com o vírus. Ele afirma: "O vírus está muito mais presente no nosso imaginário do que no nosso corpo propriamente dito. É por isso que vão dizer que o HIV é um vírus social, uma epidemia social, um problema social" .
Neste contexto, a fisiopatologia dos distúrbios psiquiátricos, embora não completamente compreendida, é reconhecida como multifatorial, incluindo fatores como hereditariedade e o meio ambiente . Mais especificamente sobre o suicídio, entende-se que a presença de condições de saúde limitantes, como doenças orgânicas incapacitantes, estigmatizantes, dolorosas e terminais constitui um fator de risco bem estabelecido para o seu desenvolvimento.
O suicídio é definido como a tentativa de tirar a própria vida de forma consciente e deliberada, através de meios considerados letais pelo indivíduo . E apesar de ser uma morte evitável, representa a quarta principal causa de morte em jovens com idade entre 15 e 29 anos, representando, portanto, um grave problema de saúde pública a nível global. Conforme dados da Organização Mundial de Saúde, estima-se que ocorram cerca de 700.000 mortes por suicídio anualmente . Agravando ainda mais a estatística, acredita-se que para cada tentativa consumada existem outras 25 pessoas tentando ou considerando tirar a própria vida .
Dentro do comportamento suicida existem diferentes conceitos que geralmente antecedem o ato em si, e que se percebidos, podem evitar mortes por suicídio. Fazem parte destes conceitos, um pensamento em que não vale mais a pena viver, uma ideação suicida, um planejamento suicida e uma tentativa abortada ou impedida por terceiros .
Assim, o presente estudo busca investigar se a infecção pelo HIV desempenha um papel no desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, com especial atenção para a ideação suicida. Além disso, busca-se analisar as particularidades nos fatores de risco inerentes a esse grupo de pacientes.
O objetivo do estudo é avaliar a prevalência de transtornos psiquiátricos, com ênfase em risco de suicídio, em pacientes soropositivos. De forma que seja possível avaliar quais os fatores associados ao desenvolvimento desses transtornos nesse grupo. Dentre os possíveis fatores de risco, foram avaliados dados clínico-epidemiológicos e laboratoriais.
A partir desse entendimento, espera-se:
Trata-se de estudo transversal, cuja metodologia envolve entrevistas com pacientes soropositivos acompanhados no ambulatório do Hospital de Infectologia e Retaguarda Clínica Oswaldo Cruz (HIRC), em Curitiba (PR), e coleta de dados foi realizada entre janeiro e abril de 2024. O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas, com CAAE n° 70235123.0.0000.0020 e parecer de aprovação de número 6.134.965, e respeitou os princípios éticos de pesquisa com seres humanos e/ou animais, em conformidade com a Resolução n° 466/2012, Resolução n° 510/2016 e com a Lei n° 11.794/2008.
Os critérios de inclusão do estudo são:
Os critérios de exclusão do estudo são:
Para a coleta de dados, foi realizada uma entrevista com os pacientes elegíveis, após o aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e o esclarecimento em relação aos riscos e benefícios do estudo. A entrevista foi dividida em três partes.
Inicialmente foi aplicado um questionário voltado à epidemiologia e aos dados clínico-laboratoriais. Nesse momento as variáveis coletadas foram: idade, gênero, data do diagnóstico de HIV, último CD4, última carga-viral, esquema TARV vigente, histórico de infecções oportunistas e outras comorbidades.
Em um segundo momento, foi aplicado o questionário Mini International Neuropsychiatric Interview (M.I.N.I) . Ele é uma ferramenta que permite triar transtornos psiquiátricos, através de perguntas cujas respostas são “sim” ou “não”. Nessa pesquisa, os transtornos avaliados são: episódio depressivo maior, distimia, risco de suicídio, episódio (hipo)maníaco, transtorno de pânico, agorafobia, fobia social, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno do estresse pós-traumático e transtorno de ansiedade generalizada.
Por fim, foi aplicado o Questionário Breve da Qualidade de Vida da OMS (WHOQOF-abreviado) . Ele é uma ferramenta elaborada pela Organização Mundial da Saúde, que permite avaliar a qualidade de vida. É dividido em seis domínios principais, sendo composto por 26 perguntas, para as quais o participante deve selecionar uma nota de 1 a 5 para estabelecer o seu nível de satisfação com determinado aspecto da sua vida.
Imediatamente após a entrevista, os resultados dos testes foram avaliados, e as condutas foram estabelecidas com base no protocolo de atendimento do ambulatório.
Caso o paciente não apresentasse nenhum teste positivo para transtornos psiquiátricos e não tivesse queixas, ele era liberado.
Caso o paciente apresentasse algum teste positivo para transtornos psiquiátricos ou queixas, mas já estivesse em acompanhamento com a psicologia e/ou psiquiatria, ele era orientado a manter vínculo e acompanhamento com o profissional de saúde mental que o atende. Ainda, foi esclarecido que, caso desejasse em algum momento ser encaminhado à unidade de saúde, ele pode solicitar ao médico assistente.
Caso o paciente apresentasse um teste positivo para transtornos psiquiátricos ou queixas referentes a saúde mental, e não estando em acompanhamento com psicologia/psiquiatria, ele era encaminhado para a Unidade de Saúde para iniciar acompanhamento psicológico/psiquiátrico. Novamente, o médico assistente era informado a respeito da situação.
Por fim, os dados coletados foram inseridos em planilha na plataforma Excel®. A partir disso, os pacientes foram divididos em dois grupos: um com os pacientes que não apresentavam transtornos psiquiátricos, e outro com pacientes que apresentavam transtornos psiquiátricos, para que fosse possível avaliar as particularidades de cada um dos grupos.
Os dados foram analisados estatisticamente com o programa computacional IBM SPSS Statistics 29. As variáveis quantitativas foram descritas por média, desvio padrão, mediana, valor mínimo e valor máximo. Para variáveis categóricas foram apresentados frequência e percentual. A associação entre duas variáveis categóricas foi analisada por meio do teste de Qui-quadrado ou teste exato de Fisher, em caso de variáveis dicotômicas. As variáveis quantitativas foram comparadas entre os grupos de pacientes com e sem transtornos psiquiátricos pelo Teste T de Student para amostras independentes, quando apresentavam distribuição normal, e quando o pressuposto de normalidade não foi atendido o teste não paramétrico de Mann-Whitney foi utilizado.
A amostra do estudo é de 69 participantes, que foram divididos em dois grupos: grupo sem diagnósticos pelo M.I.N.I (n=36) e grupo com diagnósticos pelo M.I.N.I (n=33). Os resultados serão apresentados na sequência, no formato de tabelas, que permitem a comparação dos resultados entre os dois grupos.
O Quadro 1 apresenta os resultados clínico-epidemiológicos e laboratoriais.
Quadro 1. Resultados clínico-epidemiológicos
Os resultados referentes à composição da terapia antirretroviral são apresentados no Quadro 2. Cada paciente entrevistado estava em uso de pelo menos 3 medicamentos antiretrovirais.
Quadro 2. Resultados terapia antirretroviral
Já o histórico médico pregresso e comorbidades associadas estão descritos no Quadro 3.
Quadro 3. Resultados histórico médico pregresso
No que diz respeito aos resultados do questionário M.I.N.I, a Figura 1 detalha a prevalência de cada transtorno avaliado. Tem-se que, dos 33 pacientes que apresentaram algum diagnóstico, 12 pacientes (17,4%) apresentaram somente um diagnóstico psiquiátrico, 4 pacientes (5,8%) apresentaram dois diagnósticos psiquiátricos, 3 pacientes (4,3%) apresentaram três diagnósticos psiquiátricos, 2 pacientes (2,9%) apresentaram quatro diagnósticos psiquiátricos, 5 pacientes (7,2%) apresentaram cinco diagnósticos psiquiátricos, 3 pacientes (4,3%) apresentaram seis diagnósticos psiquiátricos e 4 pacientes (5,8%) apresentaram oito diagnósticos psiquiátricos.
Figura 1. Resultados diagnósticos Mini International Neuropsychiatric Interview
Ainda, os resultados da aplicação do questionário WHOQOF-abreviado constam no Quadro 4.
Quadro 4. Resultados Questionário Breve da Qualidade de Vida da OMS
Por fim, em relação ao desfecho do atendimento, 45 pacientes (65,2%) não apresentavam necessidade de encaminhamento com psicologia/psiquiatria, 13 pacientes (18,8%) já estavam em acompanhamento e 11 pacientes (15,9%) foram encaminhados.
Sobre a prevalência de transtornos psiquiátricos na amostra estudada, tem-se que 47,8% dos entrevistados apresentou algum diagnóstico através do M.I.N.I, sendo os diagnósticos mais prevalentes o transtorno depressivo maior, agorafobia, ideação suicida e transtorno de ansiedade generalizada. Um estudo transversal realizado no estado de São Paulo, no início dos anos 2000 avaliou a prevalência de transtornos psiquiátricos comuns em pacientes na atenção primária em saúde, a partir da aplicação de questionários. Esse estudo demonstrou que, em média ¼ dos pacientes apresentou algum diagnóstico . No entanto, a prevalência varia consideravelmente dependendo da localidade e do método de estudo empregado. Estudos que se baseiam em diagnósticos previamente estabelecidos por outros médicos ou em sistemas de notificação tendem à subnotificação. Por outro lado, estudos que investigam ativamente queixas de saúde mental tendem a identificar um número maior de pacientes acometidos. Apesar disso, em concordância com a literatura, o transtorno psiquiátrico mais comumente encontrado na população do estudo é o transtorno depressivo .
Na psiquiatria, o diagnóstico de transtornos é essencialmente baseado em um conjunto de critérios que, ao serem atendidos, confirmam a existência da condição. Contudo, mesmo que o paciente não atenda todos os critérios necessários para um diagnóstico formal, o sofrimento psíquico que ele vivencia pode ser importante. Alguns sintomas, como alterações no sono e no humor, são comuns à diferentes transtornos psiquiátricos e podem ter um impacto significativo na qualidade de vida do paciente .
Nesse sentido, é fundamental questionar ativamente a presença desses e de outros sintomas, especialmente em indivíduos com condições graves ou marcadas por estigma, compreendendo a subjetividade de cada indivíduo . Mesmo sem um diagnóstico estabelecido, é possível manejar as manifestações apresentadas através da avaliação e do tratamento individualizados, contribuindo para que esses pacientes tenham uma melhor qualidade de vida.
No que diz respeito à epidemiologia, não houve variação significativa na idade ou sexo entre os dois grupos avaliados, logo, com base nos dados apontados, esses não seriam fatores de risco importantes para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos em pacientes com HIV. Por outro lado, os indicadores do IBGE do ano de 2020 indicam maior prevalência de transtornos depressivos em indivíduos entre 60-64 anos, e do sexo feminino . Já Botega, em seu livro Crise Suicida: avaliação e manejo, aponta uma predominância de tentativas de suicídio no gênero masculino, principalmente após os anos de 1990 .
Sobre os parâmetros laboratoriais, apesar do grupo 1 demonstrar um melhor controle laboratorial da infecção pelo HIV, os valores médios da carga-viral e dos linfócitos CD4 não apresentaram diferença estatisticamente significativa entre grupos. Por isso, não é possível afirmar que esses parâmetros denotem risco aumentado para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, ou que os pacientes que já apresentam acometimento de saúde mental tenham pior evolução clínico-laboratorial em relação ao HIV, por uma possível má adesão medicamentosa, por exemplo.
O tempo convivendo com o vírus, no entanto, apresentou relevância estatística: no primeiro grupo a maioria dos pacientes tem diagnóstico de HIV há mais de 12 anos, ao passo que no segundo grupo há um número maior de pacientes com diagnóstico de HIV há menos de 12 anos. Esse dado vai de encontro com o estudo transversal que avaliou a qualidade de vida de 100 pacientes com HIV, entre 2013 e 2014 no estado do Rio de Janeiro. Tal estudo sugere que os pacientes que convivem com a infecção há mais tempo tem maior satisfação com a própria saúde e com sua qualidade de vida, e os autores atribuem esse resultado à oportunidade de reavaliar a qualidade de vida, as relações sociais e de desenvolver estratégias eficazes para o enfrentamento da doença .
Em relação à composição da terapia antirretroviral, percebe-se que os pacientes do segundo grupo fazem mais uso de Efavirenz e Tenofovir, com diferença estatística importante entre os dois grupos. Conforme a literatura, um dos efeitos colaterais do Efavirenz, especialmente a longo prazo, é o acometimento da saúde mental - com sintomas ansiosos, depressivos, irritabilidade, alterações de humor e aumento do risco de suicídio em pacientes já predispostos. Entretanto, não há descrições desses mesmos efeitos associados ao uso de Tenofovir .
Atualmente, o manejo da infecção pelo HIV é realizado com três classes principais de medicamentos: os inibidores da transcriptase reversa análogos de núcleos(t)ídeos, os inibidores de integrase e os inibidores de protease. O tratamento recomendado pelo Ministério da Saúde é o esquema HAART (Highly active antiretroviral therapy), que consiste em uma combinação tríplice de antirretrovirais. A associação entre dolutegravir, lamivudina e tenofovir é considerada o padrão-ouro, e deve ser o primeiro a ser instituídos a partir do diagnóstico de HIV. No entanto, em casos de resposta insatisfatória ou resistência do vírus, outras combinações terapêuticas podem ser utilizadas .
No presente estudo, todos os participantes estavam em tratamento com terapia antirretroviral (TARV), o que impossibilita avaliar o impacto da ausência dessa intervenção. Assim, a análise limita-se às diferentes composições terapêuticas utilizadas. É importante destacar que a ausência de tratamento está diretamente associada ao aumento de infecções oportunistas e maior mortalidade entre os pacientes . Por essa razão, a suspensão dos medicamentos seria eticamente inaceitável no contexto de pesquisas.
Já no que diz respeito ao histórico médico pregresso, tanto a presença de doenças oportunistas prévias, como outras doenças crônicas, não se demonstraram como fator de risco para o acometimento da saúde mental. Em contraponto, a presença de transtornos psiquiátricos já diagnosticados foi mais comum no segundo grupo de pacientes. Esses dados divergem dos resultados obtidos em um estudo transversal realizado entre 2015 e 2016, em 35 unidades de saúde de Pelotas-RS. Esse estudo apontou uma associação a presença de doenças cardiovasculares e endócrino-metabólicas, como hipertensão arterial sistêmica e obesidade, com o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos comuns .
Na avaliação da qualidade de vida, o grupo 2 apresentou uma pior avaliação geral e nos domínios psicológico, social e meio ambiente, enquanto na avaliação da própria saúde e no domínio físico, não houve variação significativa entre os grupos. Assim, podemos concluir que um dos fatores que contribuem para o desenvolvimento de problemas psiquiátricos nesses pacientes é o contexto psicossocial, ou seja, as repercussões culturais e interpessoais da infecção parecem ter um impacto maior do que a presença do vírus em si. Essa distinção se torna mais evidente ao observarmos que a autopercepção de saúde e a funcionalidade física são bastante semelhantes entre os grupos. Isso indica que as consequências sociais da infecção pelo HIV são, algumas vezes, mais significativas do que as repercussões na saúde física.
Por fim, é fundamental destacar a importância da busca ativa por queixas relacionadas à saúde mental, especialmente entre pacientes com HIV. Esses indivíduos frequentemente enfrentam o sentimento de culpa, preconceito e estigmatização, que se tornam desafios diários e representam uma importante fonte de sofrimento psíquico. Esse sofrimento muitas vezes não é comunicado espontaneamente pelos pacientes, o que torna crucial que os profissionais de saúde façam questionamentos diretos sobre sintomas relacionados à saúde mental.
Sem essa abordagem proativa, há um risco substancial de que os sintomas psicológicos permaneçam não tratados, perpetuando o quadro clínico e impedindo que os pacientes recebam o suporte adequado. O atendimento integral à saúde dessas pessoas deve incluir uma atenção especial aos aspectos emocionais e psicológicos, reconhecendo que a saúde mental é tão importante quanto a saúde física para o bem-estar geral. Profissionais de saúde devem ser treinados para identificar sinais de sofrimento psíquico e criar um ambiente seguro e acolhedor, onde os pacientes se sintam à vontade para compartilhar suas dificuldades. Além disso, políticas de saúde pública devem reforçar a necessidade de programas de apoio psicológico específicos para pessoas vivendo com HIV, ajudando a minimizar o impacto do estigma e promovendo uma melhor qualidade de vida.
Como limitações do presente estudo, podemos mencionar o seu desenho, por se tratar de um estudo transversal, a correlação temporal entre os eventos fica prejudicada, não sendo possível estabelecer com certeza a relação entre causa e consequência. Ainda, o tamanho da amostra é uma limitação, já que estudos com amostras mais expressivas são mais representativos, e tem menor chance de viés. Por fim, existem outros aspectos na individualidade de cada participante que podem contribuir com o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, como por exemplo a ocupação, e que não foram contemplados no presente estudo.
Dessa forma, há necessidade de maiores estudos epidemiológicos na área, que sejam fonte de informação e permitam um cuidado mais detalhado e individualizado desses pacientes.
Pacientes com HIV tem elevada prevalência de transtornos, os quais são influenciados por diversos fatores, dentre eles se destacam o tempo de diagnóstico da infecção e a composição da terapia antirretroviral. Além disso, tais pacientes tendem a ter uma pior avaliação da sua qualidade de vida geral, e nos domínios psicológico, social e ambiental. O que reforça a hipótese da influência do estigma e do preconceito na vida das pessoas que vivem com o HIV.
Não se aplicam agradecimentos. O presente manuscrito é resultado de um projeto de iniciação científica, sem fontes de financiamento. Os autores declaram que não há conflitos de interesse de ordem pessoal, comercial, acadêmica, político e/ou financeira, no processo de apreciação e publicação do referido artigo.
Durante a preparação deste trabalho, os autores usaram chat-GPT para fins de adequação de escrita em alguns parágrafos, bem como para tradução do resumo para outro idioma. Depois de usar esta ferramenta, os autores revisaram e editaram o conteúdo conforme necessário e assumiram total responsabilidade pelo conteúdo da publicação
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