Filiação dos autores:
1,2 [Residentes em Psiquiatria, Hospital São Vicente de Paulo, HSVP, Brasília, DF, Brasil]
3,4 [Psiquiatras, Hospital São Vicente de Paulo, HSVP, Brasília, DF, Brasil]
Editor-chefe responsável pelo artigo: Alexandre Martins Valença
Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: : Valsechi DF [1,2,5,6,7,12,13,14], Pinto MSB [2,5,13,14], Fernandes BS, Silva GFA [10,13,14]
Conflito de interesses: declaram não haver
Fonte de financiamento: declaram não haver
Parecer CEP: CAAE n. 84161024.9.0000.5553. Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde, Parecer n. 7.246.956.
Recebido em: 26/11/2024 | Aprovado em: 08/02/2025 | Publicado em: 13/03/2025
Como citar: Valsechi DF, Pinto MSB, Fernandes BS, Silva GFA. Mania de Bell: relato de caso de mania aguda delirante. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2025;15:1-9. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2025.v15.1381
A mania de Bell, também denominada de mania aguda delirante e outras nomenclaturas, é um quadro clínico grave, de etiologia e fisiopatologia pouco conhecidas, caracterizada pela manifestação súbita e simultânea dos sintomas de mania e delirium. Atualmente inexistem critérios diagnósticos consensuais e diretrizes terapêuticas para seu manejo adequado, além de raros dados epidemiológicos e relatos de casos na literatura científica. Relata-se o caso de uma paciente mulher de 31 anos com mania aguda delirante que recebeu tratamento psicofarmacológico e multiprofissional durante duas internações em hospital psiquiátrico. Apesar de existirem controvérsias sobre o tratamento dessa forma de adoecimento psíquico, houve estabilização e remissão dos sintomas após a introdução de benzodiazepínico, com evolução longitudinal favorável por meio da prescrição de ácido valpróico associado a clozapina.
Palavras-chave: mania de Bell, transtorno bipolar, mania, delirium, farmacoterapia, tratamento farmacológico.
Bell's mania, also called acute delirious mania and other nomenclatures, is a severe clinical case, whose etiology and pathophysiology are not widely known. It is characterized by the sudden and simultaneous manifestation of the symptoms of mania and delirium. Currently, there are no consensual diagnostic criteria, and therapeutic guidelines for its proper management, moreover there are rare epidemiological data and case reports in scientific literature. We report the case of a 31-year-old female patient with acute delirious mania who received psychopharmacological and multiprofessional treatment during two hospitalizations in a psychiatric hospital. Although there are controversies about the treatment of this form of mental illness, there was stabilization and remission of symptoms once the benzodiazepine was introduced, with favorable longitudinal evolution through the prescription of valproic acid associated with clozapine.
Keywords: Bell's mania, bipolar disorder, mania, delirium, pharmacotherapy, drug therapy.
La manía de Bell, también llamada manía delirante aguda y otras nomenclaturas, es un cuadro clínico grave, de etiología y fisiopatología poco conocidas, caracterizado por la manifestación repentina y simultánea de los síntomas de manía y delirium. Actualmente, no existen criterios diagnósticos consensuados y tampoco guías terapéuticas para su adecuado manejo, además de escasos datos epidemiológicos e informes de casos en la literatura científica. Informamos el caso de una paciente de 31 años con manía delirante aguda que recibió tratamiento psicofarmacológico y multiprofesional durante dos hospitalizaciones en un hospital psiquiátrico. Aunque existen controversias sobre el tratamiento de esta forma de enfermedad mental, hubo estabilización y remisión de los síntomas después de la introducción de la benzodiazepina, con evolución longitudinal favorable a través de la prescripción de ácido valproico asociado a la clozapina.
Palabras clave: manía de Bell, trastorno bipolar, manía, delirium, farmacoterapia, terapia farmacológica.
Os primeiros casos reconhecidos por François-Emmanuel Fodéré no início do século XIX, descritos por Luther Bell e agrupados por Emil Kraepelin sob o termo delirious mania marcam as investigações iniciais sobre um quadro clínico grave e pouco reconhecido, caracterizado pela ocorrência concomitante de sintomas de mania e delirium: trata-se da mania de Bell, também mencionada na literatura científica como catatonia excitada, mania aguda delirante, delirium grave e outras nomenclaturas .
Além das imprecisões terminológicas, essa categoria nosológica não consta na 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e na 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Atualmente, não há critérios diagnósticos consensuais nem diretrizes terapêuticas estabelecidas, sendo escassos os relatos de caso . Apesar da carência de dados epidemiológicos, alguns estudos estimam que os sintomas descritos como "mania delirante" estão presentes em 15% a 25% dos pacientes maníacos .
A etiopatogenia dessa condição clínica ainda é pouco compreendida , sendo por vezes atribuída a níveis tóxicos de medicamentos e drogas, distúrbios metabólicos e infecções do sistema nervoso central . Alguns autores descreveram a fisiopatologia a partir da hiperatividade dopaminérgica em circuitos cerebrais, demonstrando a correlação entre a ativação do córtex cingulado anterior e a gravidade dos sintomas maníacos .
Os seguintes critérios foram propostos para caracterizar um quadro de mania aguda delirante: 1) Início agudo, com ou sem sinais premonitórios de irritabilidade, insônia ou retraimento emocional; 2) Presença da síndrome hipomaníaca ou maníaca em algum momento da doença; 3) Desenvolvimento de sinais e sintomas de delirium; 4) História pessoal de mania ou depressão; 5) História familiar de transtorno afetivo maior; e 6) Resposta aos tratamentos padrão para a mania .
A mania aguda delirante caracteriza-se por início abrupto, rápida progressão dos sintomas (horas ou dias), curso flutuante (com alternância de delirium, mania, psicose e catatonia) e amnésia lacunar ou global dos eventos após resolução do episódio agudo . Requer critérios para delirium e mania, além da exclusão de causas médicas, neurológicas e toxicológicas . Sintomas catatônicos são frequentes e a remissão é comum, com recorrências em intervalos variados .
Na mania de Bell, as alterações psicopatológicas da mania e do delirium manifestam-se concomitantemente, com excitação aguda, disfunção cognitiva grave, aumento da atividade psicomotora, labilidade afetiva, insônia, irritabilidade, grandiosidade, alteração da consciência, discurso desorganizado, fuga de ideias, comportamento sexual inadequado e desorientação .
O diagnóstico diferencial deve considerar condições médicas gerais, como infecções e alterações metabólicas, além de problemas neurológicos, causas toxicológicas e outras síndromes neuropsiquiátricas, como os transtornos do espectro da esquizofrenia e demências .
Relata-se o caso clínico de uma paciente com quadro de mania aguda delirante, internada para tratamento em ambiente hospitalar. Na elaboração deste caso clínico, foram revisados os dados disponíveis em prontuário, como histórico pessoal, avaliação psiquiátrica e exames clínico-laboratoriais.
O consentimento livre e esclarecido da paciente foi obtido, assim como a autorização para publicação do relato de caso. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (CAAE nº 84161024.9.0000.5553).
Paciente do sexo feminino, 31 anos, brasileira, divorciada, com ensino superior em curso e trabalhadora do comércio, compareceu ao pronto-socorro psiquiátrico acompanhada dos familiares devido à agitação psicomotora, heteroagressividade, insônia e discurso delirante. O início das manifestações coincidiu com um quadro de rinossinusite aguda há duas semanas; não havia histórico de doenças crônicas, uso de álcool e outras drogas, alterações comportamentais ou tratamentos psiquiátricos.
Procedeu-se à internação involuntária devido ao risco para si mesma e para terceiros, com juízo da realidade prejudicado e crítica ausente. Na admissão hospitalar, o teste rápido para SARS-CoV-2 foi negativo e a investigação clínico-laboratorial não revelou disfunções bioquímicas ou alterações neurológicas, apenas elevação da Proteína C Reativa (2,5 mg/dL). Prescreveu-se ácido valproico 1.500 mg/dia, clonazepam 2 mg/noite e risperidona 2 mg/noite até o 5º dia de internação. Nesse período, houve disfunções autonômicas, como episódios de incontinência urinária, hiperidrose e turvação visual; ademais, as manifestações psicopatológicas incluíam desorientação auto e alopsíquica, alternância entre taquipsiquismo e bradipsiquismo, labilidade afetiva, alternância entre aumento e redução da psicomotricidade, delírios persecutórios e discurso incoerente com conteúdo místico-religioso, político-partidário e hiperssexualizado.
Diante da piora do quadro clínico, no 10º dia de internação aventou-se a hipótese diagnóstica de mania aguda delirante, com modificação do plano terapêutico psicofarmacológico para clonazepam 9 mg/dia, aripiprazol 30 mg/dia, ácido valproico 1.500 mg/dia e clorpromazina 150 mg/dia. Os exames laboratoriais foram normais e a tomografia computadorizada de crânio não apresentou anormalidades significativas. Em poucos dias, houve normalização da psicomotricidade e da velocidade do pensamento, com redução progressiva do clonazepam e manutenção das demais medicações. A paciente recuperou o juízo da realidade e recebeu alta hospitalar no 32º dia de internação, com prescrição de ácido valproico 1.500 mg/dia, aripiprazol 30 mg/noite e zuclopentixol 200 mg/mL (2 ampolas/mês).
Um mês após a alta, a paciente compareceu à consulta ambulatorial com baixa adesão ao tratamento medicamentoso, apresentando delírios persecutórios, alucinações cenestésicas, labilidade afetiva e desorientação alopsíquica. Foi encaminhada ao pronto-socorro psiquiátrico e readmitida em internação hospitalar para estabilização do quadro clínico. Tentou-se a substituição de ácido valproico por carbonato de lítio, com litemia de 0,34 mEq/L no 10º dia e 0,64 mEq/L no 19º dia; entretanto, a troca foi interrompida devido à persistência dos sintomas maníacos. A substituição de aripiprazol por olanzapina também não alterou as manifestações psicopatológicas, o que levou à introdução progressiva de clozapina. Com a remissão completa dos sintomas de mania e delirium, a alta hospitalar ocorreu no 41º dia de internação, com prescrição de ácido valproico 1.000 mg/dia e clozapina 200 mg/dia.
Desde os primeiros relatos de casos, diversas divergências surgiram quanto à classificação desse quadro clínico. Devido às manifestações psicopatológicas, os pacientes são frequentemente diagnosticados com transtorno afetivo bipolar do tipo I . No caso relatado, a apresentação psicopatológica atípica, somada aos sinais de gravidade clínica, como disautonomias e outras disfunções vegetativas, direcionou o raciocínio diagnóstico para mania aguda delirante.
Atualmente, não existem diretrizes terapêuticas estabelecidas ; contudo, relatos e séries de casos têm enfatizado a eletroconvulsoterapia (ECT) como um tratamento efetivo e até mesmo definitivo , com respostas clínicas observadas em até três sessões . A ECT reduz morfologias patológicas de ondas lentas e corrige o circuito sináptico disfuncional , sendo eficaz em todas as formas de catatonia, inclusive em casos refratários a benzodiazepínicos .
Apesar de não apresentar o mesmo nível de evidência da ECT, estudos apontam o uso de altas doses de benzodiazepínicos quando a ECT não está disponível , especialmente o lorazepam . Devido à indisponibilidade de ECT e lorazepam no serviço hospitalar, utilizou-se clonazepam no caso em questão, com resposta satisfatória
Dentre os estabilizadores de humor, a carbamazepina e o ácido valproico demonstraram benefícios em diversos casos. Há resultados conflitantes sobre o uso de carbonato de lítio, sendo por vezes uma importante medicação adjuvante , mas também há relatos de que não apresenta benefícios , pode causar encefalopatias e até precipitar essa condição clínica em níveis tóxicos . No caso descrito, a estabilização do humor ocorreu com ácido valproico e não houve resposta clinicamente relevante após a substituição temporária pelo lítio.
Em relação ao emprego de antipsicóticos para o tratamento da mania de Bell, há divergências na literatura: enquanto alguns autores defendem que devem ser evitados, alegando um possível atraso na remissão do quadro , diversos relatos descrevem melhora com o uso de quetiapina e olanzapina . O uso terapêutico da clozapina também apresenta resultados conflitantes: por um lado, há relatos de tratamentos bem-sucedidos ; por outro, há descrições de deterioração no estado mental após seu uso . No caso relatado, houve resposta parcial ao uso de aripiprazol e olanzapina, com remissão sintomática e estabilização clínica a longo prazo com o uso de clozapina.
A paciente apresentou melhora aguda do quadro clínico com aripiprazol, ácido valproico e altas doses de clonazepam durante a primeira internação. Na segunda internação, houve resposta ineficaz ao uso de aripiprazol e olanzapina, com evolução satisfatória com o uso contínuo de clozapina associado ao ácido valproico.
A mania aguda delirante é um quadro grave que pode ocorrer em até um quarto dos pacientes com mania. Apesar de sua relativa prevalência, há escassez de relatos disponíveis e pouco consenso entre os estudos.
Este relato de caso ilustra o benefício da associação de ácido valproico, clonazepam e clozapina no tratamento de uma paciente com esse diagnóstico, com remissão dos sintomas disautonômicos, estabilização do quadro psicopatológico e recuperação da funcionalidade. Embora os resultados obtidos estejam em concordância com estudos prévios, são necessárias pesquisas mais abrangentes, desde séries de casos a ensaios clínicos, a fim de estabelecer critérios diagnósticos e diretrizes terapêuticas para o tratamento adequado dessa condição.
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