Filiação dos autores:
1 [Professor, Faculdade de Medicina da Universidade Luterana do Brasil, ULBRA, Canoas, RS, Brasil. Preceptor do Ambulatório de Psiquiatria do Hospital Universitário de Canoas, Canoas, RS, Brasil]
2 [Pós-Doutor em Medicina Molecular, Presidente, Associação Brasileira de Psiquiatria, ABP, Rio de Janeiro, RJ, Brasil]
Editor-chefe responsável pelo artigo: Leandro Fernandes Malloy-Diniz
Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: Weber CAT, Silva AG [1,12,13,14]
Conflito de interesses: declaram não haver
Fonte de financiamento: declaram não haver
Parecer CEP: não se aplica
Recebido em: 21/02/2025 | Aprovado em: 26/02/2025 | Publicado em: 28/02/2025
Como citar: Weber CAT, Silva AG. Integralidade negada, cuidado negligenciado: o estigma da doença mental no Programa Farmácia Popular do Brasil. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2025.v15.1427
Este artigo discute a ausência de psicofármacos no Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB), uma iniciativa para o acesso a medicamentos essenciais. Apesar de sua longa trajetória e impacto significativo, o programa ainda não inclui medicamentos psiquiátricos em sua lista, refletindo um estigma estrutural em relação às doenças mentais nas políticas públicas brasileiras. O texto analisa as consequências dessa exclusão para pacientes psiquiátricos, que enfrentam não apenas marginalização social, mas também barreiras ao acesso a tratamentos adequados. A indisponibilidade de psicotrópicos essenciais compromete a estabilidade clínica desses pacientes, aumentando hospitalizações, reduzindo a expectativa de vida e contribuindo para desfechos fatais evitáveis. Além disso, a expansão do elenco de medicamentos do PFPB em 2025, com a inclusão de 41 novos itens, evidencia a contínua exclusão da saúde mental. O artigo reforça, assim, a necessidade urgente de políticas mais inclusivas, reconhecendo os psicofármacos como parte essencial do cuidado integral em psiquiatria.
Palavras-chave: doença mental, estigma, psicotrópicos, política de saúde, programas de saúde pública, transtornos mentais.
This paper discusses the absence of psychotropic medications in the Brazilian Popular Pharmacy Program (PFPB), a initiative for access to essential medicines. Despite its long-standing presence and significant impact, the program still does not include psychiatric medications in its list, reflecting a structural stigma against mental illness in Brazilian public policies. The text examines the consequences of this exclusion for psychiatric patients, who face not only social marginalization but also barriers to accessing adequate treatment. The lack of access to essential psychotropic drugs compromises these patients' clinical stability, leading to increased hospitalizations, reduced life expectancy, and preventable fatal outcomes. Furthermore, the expansion of the PFPB’s list in 2025, with the addition of 41 new items, underscores the continued exclusion of mental health care. This paper thus highlights the urgent need for more inclusive policies, recognizing psychotropic medications as an essential component of comprehensive psychiatric care.
Keywords: mental illness, stigma, psychotropic drugs, health policy, public health programs, mental disorders.
Este estudio analiza la ausencia de psicofármacos en el Programa Farmacia Popular de Brasil (PFPB), una iniciativa para el acceso a medicamentos esenciales. A pesar de su trayectoria y su impacto significativo, el programa aún no incluye medicamentos psiquiátricos en su lista, lo que refleja un estigma estructural hacia las enfermedades mentales en las políticas públicas brasileñas. El texto examina las consecuencias de esta exclusión para los pacientes psiquiátricos, quienes enfrentan no solo marginación social, sino también barreras para acceder a un tratamiento adecuado. La falta de acceso a psicotrópicos esenciales compromete la estabilidad clínica de estos pacientes, aumentando las hospitalizaciones, reduciendo la esperanza de vida y contribuyendo a desenlaces fatales evitables. Además, la ampliación del listado de medicamentos del PFPB en 2025, con la inclusión de 41 nuevos fármacos, evidencia la continua exclusión de la salud mental. Este estudio subraya, por lo tanto, la necesidad urgente de políticas más inclusivas, reconociendo a los psicofármacos como una parte esencial del cuidado integral en psiquiatría.
Palabras clave: trastornos mentales, estigma, fármacos psicotrópicos, política de salud, programas de salud pública, trastornos mentales.
Em 13 de fevereiro de 2025, o Ministério da Saúde anunciou uma expansão do PFPB, com a inclusão de 41 novos itens ao elenco de medicamentos e insumos disponibilizados gratuitamente, de acordo com o disposto na Portaria GM/MS nº 6.613, que alterou o Anexo LXXVII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 5/2017 . Essa medida visa ampliar o acesso da população a tratamentos essenciais e fortalecer a assistência farmacêutica no país.
Embora o governo afirme que o PFPB tem um papel fundamental na promoção da saúde e na redução das desigualdades, a ausência de qualquer psicofármaco na lista de medicamentos gratuitos, mesmo após 20 anos de existência do programa, revela uma contradição.
Tal contradição não pode ser explicada apenas por critérios técnicos ou econômicos, mas sim pelo estigma estrutural que historicamente marginaliza a doença mental nas políticas públicas. O estigma não apenas afeta a forma como a sociedade percebe as pessoas padecentes de doenças mentais, mas também influencia decisões institucionais, levando à negligência sistêmica desse grupo .
A exclusão dos psicofármacos do PFPB reflete essa lógica excludente, perpetuando a ideia de que as doenças mentais não são tão prioritárias quanto outras condições de saúde, reforçando barreiras de acesso e ampliando a vulnerabilidade dessas populações.
O estigma relacionado às doenças mentais é uma questão profundamente arraigada nas sociedades modernas, com repercussões significativas no tratamento, reintegração social e qualidade de vida das pessoas afetadas. O fenômeno do estigma é uma construção social que se manifesta tanto na percepção pública quanto nas atitudes individuais, influenciando de maneira adversa a forma como os indivíduos com doenças mentais são tratados e vistos pela sociedade.
O estigma da doença mental não se restringe ao preconceito interpessoal, mas está enraizado em estruturas institucionais, incluindo as políticas de saúde pública. A falta de psicofármacos no PFPB não se trata apenas de uma falha administrativa, mas de um reflexo do estigma estrutural que desvaloriza a doença mental em comparação com outras doenças.
Não haver psicofármacos no PFPB representa um grave reflexo do estigma estrutural que permeia a doença mental, gerando consequências para os pacientes e suas famílias. O acesso limitado ao tratamento medicamentoso compromete diretamente o manejo adequado de transtornos psiquiátricos graves, como depressão maior, transtorno bipolar e esquizofrenia, condições que frequentemente exigem uso contínuo de medicação para estabilização clínica.
A ausência de psicotrópicos gratuitos para dispensação pelo sistema de saúde impõe barreiras econômicas que restringem o acesso ao tratamento, resultando no agravamento dos sintomas, aumento das taxas de hospitalização e piora da qualidade de vida. Esse cenário viola o princípio da integralidade do cuidado, estabelecido pelo SUS, e reforça a marginalização dos pacientes psiquiátricos, perpetuando sua exclusão social.
Um dos principais impactos da falta de acesso a medicamentos psiquiátricos é o aumento dos anos de vida perdidos por incapacidade (Disability-Adjusted Life Years – DALYs), métrica utilizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para avaliar a carga global das doenças.
As doenças mentais estão entre as principais causas de incapacidade global, sendo a depressão a principal responsável por anos vividos com deficiência (Years Lived with Disability – YLDs). Estudos indicam que indivíduos com doenças mentais graves vivem, em média, 10 a 20 anos a menos do que a população geral, em grande parte devido a complicações associadas ao não tratamento adequado, como comorbidades médicas, suicídio e maior vulnerabilidade social. A inexistência de políticas públicas que garantam o acesso gratuito aos psicofármacos contribui para essa redução da expectativa de vida, intensificando o impacto da doença mental não tratada na mortalidade precoce .
Além do impacto direto sobre os pacientes, a falta de acesso ao tratamento adequado também afeta suas famílias, que frequentemente assumem o ônus financeiro e emocional do cuidado.
Sem medicação, muitos pacientes enfrentam dificuldades para manter a estabilidade emocional e funcional, resultando em perda de produtividade, abandono escolar e dificuldades para inserção no mercado de trabalho.
A saúde mental no ambiente de trabalho tem se tornado uma preocupação crescente, com impactos significativos na produtividade e no bem-estar dos trabalhadores. Em 2019, a OMS estimou que 15% dos adultos em idade produtiva sofriam com doenças mentais, sendo o estresse crônico e a exaustão emocional, algumas das principais causas de afastamento laboral .
No Brasil, entre 2007 e 2017, essas doenças se configuraram como a terceira maior causa de licença médica, representando 52% dos benefícios sociais concedidos no período. Durante a pandemia de 2020, os transtornos do humor foram responsáveis por 55% dos dias de afastamento no país, evidenciando não apenas a vulnerabilidade dos trabalhadores diante de condições laborais desafiadoras, mas também a necessidade de quebrar estigmas e ampliar o acesso a cuidados adequados .
Os dados sobre a concessão de benefícios por incapacidade temporária devido a doenças mentais e comportamentais reforçam essa preocupação . Conforme registrado nos últimos anos, houve oscilações significativas no número de afastamentos, com um pico expressivo em 2023, quando foram concedidos 283.471 benefícios. Em comparação, os anos anteriores registraram números menores, como 2019 (207.945 benefícios) e 2020 (91.607 benefícios), refletindo os impactos da pandemia e das dificuldades no acesso ao tratamento. A tendência de crescimento recente ressalta a necessidade de políticas públicas eficazes para a prevenção e o manejo das doenças mentais no ambiente de trabalho, garantindo suporte adequado para os trabalhadores afetados .
O estigma também se reflete na dificuldade em reconhecer a necessidade de tratamento, o que leva à postergação do diagnóstico e ao agravamento da condição clínica. Em casos extremos, a ausência de tratamento adequado pode resultar em desfechos fatais evitáveis, como suicídio e morte prematura por complicações associadas.
A negligência histórica com os pacientes doentes mentais no Brasil e a ausência de psicofármacos no PFPB evidenciam como o estigma estrutural impacta diretamente a vida dessas pessoas. O reconhecimento da doença mental como uma condição crônica e prioritária no contexto das políticas públicas é essencial para reverter esse quadro.
Assim como o governo expandiu recentemente a oferta de medicamentos para doenças cardiovasculares e diabetes, é urgente a inclusão de psicofármacos na lista de medicações disponibilizadas pelo PFPB, garantindo um cuidado integral e reduzindo as desigualdades no acesso à saúde.
1. Brasil. Lei nº 10.858, de 13 de abril de 2004. Autoriza a Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz a disponibilizar medicamentos, mediante ressarcimento, e dá outras providências. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2004/lei-10858-13-abril-2004-531689-norma-pl.html
2. Brasil. Decreto nº 5.090, de 20 de maio de 2004. Regulamenta a Lei no 10.858, de 13 de abril de 2004, e institui o programa "Farmácia Popular do Brasil", e dá outras providências. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/decreto5090farmaciapopular.pdf
3. Brasil, Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 6.613, de 13 de fevereiro de 2025. Altera o Anexo LXXVII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 28 de setembro de 2017, para estabelecer a gratuidade dos medicamentos do elenco do Programa Farmácia Popular do Brasil para o tratamento de incontinência urinária e diabetes mellitus associada a doença cardiovascular, extinguindo a modalidade do copagamento do Programa. https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/servlet/INPDFViewer?jornal=515&pagina=67&data=14/02/2025&captchafield=firstAccess
4. Brasil, Ministério da Saúde. Portaria de Consolidação nº 5, de 28 de setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde. https://portalsinan.saude.gov.br/images/documentos/Legislacoes/Portaria_Consolidacao_5_28_SETEMBRO_2017.pdf
5. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC; 1988.
6. Corrigan PW, Watson AC. Understanding the impact of stigma on people with mental illness. World Psychiatry. 2002;1(1):16-20. PMID:16946807 - PMCID:PMC1489832
7. World Health Organization. Mental health action plan 2013-2020. Geneva: World Health Organization; 2013. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241506021
8. World Health Organization. World mental health report: transforming mental health for all. Geneva: World Health Organization; 2022. https://www.who.int/publications/i/item/9789240049338
9. Brasil, Ministério da Fazenda, Secretaria de Previdência. Adoecimento mental e trabalho: a concessão de benefícios por incapacidade relacionados a transtornos mentais e comportamentais entre 2012 e 2016. Brasília: Ministério da Fazenda; 2017. (1º Boletim quadrimestral sobre benefícios por incapacidade). https://sa.previdencia.gov.br/site/2017/04/1%C2%BA-boletim-quadrimestral.pdf
10. Brasil, Ministério da Previdência Social. Anuário estatístico da Previdência Social - AEPS. Brasília: Ministério da Previdência Social; 2023. https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-social/arquivos/aeps-2023/aeps-2023