Filiação dos autores:
1 [Professor, Faculdade de Medicina da Universidade Luterana do Brasil/ULBRA, Canoas, RS, Brasil. Preceptor do Ambulatório de Psiquiatria do Hospital Universitário de Canoas, Canoas, RS, Brasil]
2 [Pós-Doutor em Medicina Molecular, Presidente, Associação Brasileira de Psiquiatria, ABP, Rio de Janeiro, RJ, Brasil]
Editor-chefe responsável pelo artigo: Leandro Fernandes Malloy-Diniz
Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: Weber CAT, Silva AG [1,12,13,14]
Conflito de interesses: declaram não haver
Fonte de financiamento: declaram não haver
Parecer CEP: não se aplica
Recebido em: 12/03/2025 | Aprovado em: 20/03/2025 | Publicado em: 25/03/2025
Como citar: Weber CAT, Silva AG. A assistência psiquiátrica no Brasil e a necessidade de um modelo equilibrado. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2025;15:1-7 https://doi.org/10.25118/2763-9037.2025.v15.1442
O relatório Saúde Mental em Dados, 13ª Edição, publicado pelo Ministério da Saúde em fevereiro de 2025 , reafirma a política antimanicomial no Brasil, destacando a desinstitucionalização e o cuidado em liberdade como prioridades. Embora seja mencionada a expansão dos CAPS e da RAPS, o documento desconsidera as evidências científicas que indicam a inadequação desse modelo para pacientes com transtornos mentais graves. A drástica redução de leitos psiquiátricos e o aumento da mortalidade indicam a ineficácia da política, que parece mais guiada por ideologias do que por dados médicos consistentes. Além disso, a falta de alternativas adequadas ao fechamento dos hospitais psiquiátricos resulta na transinstitucionalização ou reinstitucionalização invisível, onde pacientes acabam em prisões e ruas, com aumento da mortalidade, principalmente por suicídio e doenças crônicas. O relatório também destaca a formação de profissionais, mas omite dados sobre a quantidade de psiquiatras no Brasil, que já eram inferiores ao recomendado pela OMS. O financiamento da saúde mental é insuficiente, representando uma fração mínima do orçamento necessário. A desvalorização da psiquiatria e a falta de suporte adequado comprometem a qualidade do atendimento. A revisão do modelo vigente é urgente, priorizando um modelo integrado que combine assistência comunitária e hospitalar, fundamentado em evidências científicas.
Palavras-chave: transtornos mentais, desinstitucionalização, centros de atenção psicossocial, cuidados psiquiátricos hospitalares, políticas públicas de saúde mental, serviços de saúde mental, CAPS.
The Mental Health in Data report, 13th Edition, published by the Ministry of Health in February 2025 , reaffirms the continuation of Brazil's anti-asylum policy, prioritizing deinstitutionalization and community-based care. The expansion of CAPS and the RAPS is highlighted as progress, but the report ignores scientific evidence demonstrating that this model is insufficient for treating patients with severe and persistent mental disorders. The drastic reduction in psychiatric beds and the increase in mortality among these patients highlight the ineffectiveness of a policy driven more by ideology than by robust medical evidence. Additionally, the closure of psychiatric hospitals without adequate alternatives leads to the phenomenon of transinstitutionalization or invisiblereinstitutionalization, where patients are transferred to prisons, streets, and overcrowded emergency rooms. Studies show that the lack of adequate psychiatric care is linked to increased suicide rates and untreated chronic diseases, especially among individuals with schizophrenia and bipolar disorder. The report emphasizes the ongoing education of mental health professionals but provides no updated data on the density of psychiatrists in Brazil. The financing for mental health remains insufficient, with allocations representing a tiny fraction of what is necessary. The diminishing role of psychiatry within mental health policy and the lack of proper medical support negatively impact the quality of care. A revision of the current model is urgently needed, focusing on an integrated approach that balances community-based and hospital care, based on scientific evidence.
Keywords: mental disorders, deinstitutionalization, psychosocial care centers, psychiatric hospital care, public health policy, mental health services, PCC.
El informe Salud mental en datos, 13.ª edición, publicado por el Ministerio de Salud en febrero de 2025 , reafirma la política antimanicomial en Brasil, destacando la desinstitucionalización y el cuidado en libertad como prioridades. Aunque se menciona la expansión de los CAPS y de la RAPS, el documento no considera las evidencias científicas que demuestran que este modelo es insuficiente para atender a pacientes con trastornos mentales graves. La drástica reducción de camas psiquiátricas y el aumento de la mortalidad entre estos pacientes evidencian la ineficacia de una política que parece más guiada por ideologías que por datos médicos sólidos. Además, el cierre de hospitales psiquiátricos sin alternativas adecuadas genera el fenómeno de la transinstitucionalización o reinstitucionalización invisible, donde los pacientes terminan en prisiones, calles y salas de emergencia saturadas. Los estudios muestran que la falta de atención psiquiátrica adecuada está asociada con un aumento de suicidios y enfermedades crónicas no tratadas, especialmente en individuos con esquizofrenia y trastorno bipolar. El informe enfatiza la formación continua de profesionales, pero no presenta datos actualizados sobre la cantidad de psiquiatras en Brasil. El financiamiento para la salud mental sigue siendo insuficiente, con asignaciones que representan una fracción mínima de lo necesario. La desvalorización de la psiquiatría y la falta de soporte médico adecuado afectan negativamente la calidad de la atención. Es urgente revisar el modelo actual, priorizando un enfoque integrado que combine atención comunitaria y hospitalaria, basado en evidencia científica. .
Palabras clave: trastornos mentales, desinstitucionalización, centros de atención psicosocial, atención psiquiátrica hospitalaria, políticas públicas de salud mental, servicios de salud mental, CAPS .
A recente publicação do relatório Saúde Mental em Dados, 13ª Edição pelo Ministério da Saúde, em fevereiro de 2025, reafirma a continuidade da política antimanicomial no Brasil, reforçando diretrizes que priorizam a desinstitucionalização e o chamado cuidado em liberdade em detrimento da assistência psiquiátrica especializada tanto ambulatorial quanto hospitalar .
O documento apresenta a expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como um avanço, mas ignora evidências científicas que demonstram a insuficiência desse modelo para atender pacientes com transtornos mentais graves e persistentes.
A redução drástica do número de leitos psiquiátricos hospitalares, associada ao aumento da mortalidade desses pacientes, evidencia a ineficácia de uma política que tem sido guiada mais por ideologias do que por evidências médicas robustas .
Em 2020, o Brasil possuía 11,3 leitos psiquiátricos por 100.000 habitantes. A redução de aproximadamente 57% desse total até 2024 sugere que esse número caiu para cerca de 4,8 por 100.000 habitantes, um índice alarmantemente inferior ao recomendado pela OMS para países em transição para modelos comunitários . Merece destaque, o fato de que essa queda não foi acompanhada por uma ampliação proporcional da oferta de serviços alternativos. Embora o relatório sublinhe a criação de novos CAPS, a inclusão de apenas 159 leitos psiquiátricos em hospitais gerais entre 2023 e 2024 levanta dúvidas sobre a capacidade do sistema em absorver a demanda crescente de pacientes psiquiátricos em crises agudas .
A experiência internacional mostra que o fechamento indiscriminado de hospitais psiquiátricos sem a implementação de alternativas adequadas gera o fenômeno da “transinstitucionalização” ou “reinstitucionalização invisível”, onde pacientes psiquiátricos graves acabam sendo transferidos para prisões, ruas e pronto-socorros sobrecarregados. Estudos clássicos demonstram que a ausência de internações psiquiátricas adequadas está associada a um aumento significativo na mortalidade por suicídio e por doenças crônicas subtratadas, especialmente em indivíduos com esquizofrenia e transtorno bipolar .
O relatório enfatiza a formação e capacitação contínua de profissionais de saúde mental, mas não apresenta dados atualizados sobre a densidade desses profissionais em 2024.
Em 2020, o Brasil contava com apenas 2,7 psiquiatras e 22 trabalhadores de saúde mental por 100.000 habitantes . Ainda que se considere a ocorrência de um crescimento nesse número, ele não é especificado no documento, dificultando uma avaliação concreta da suficiência dos recursos humanos na área. Tais números já eram inferiores ao recomendado internacionalmente, e sem uma ampliação expressiva da força de trabalho, a qualidade do atendimento tende a deteriorar-se .
A questão do financiamento também permanece nebulosa. O relatório menciona investimentos na expansão dos serviços, mas não detalha os valores específicos alocados em 2024 .
A OMS revela que o investimento em saúde mental permanece extremamente baixo em muitos países, com uma média global de apenas 2% dos orçamentos nacionais de saúde destinados a essa área. Para países de renda média, o gasto médio em saúde mental fica entre US$ 2 e US$ 5 per capita, enquanto para países de baixa renda, esse valor pode ser inferior a US$ 1 per capita .
A persistência desse subfinanciamento agrava a já elevada lacuna de tratamento, que, no Brasil, mantém entre 76% e 85% das pessoas com transtornos mentais graves sem qualquer assistência adequada .
Além da crise assistencial, a psiquiatria como especialidade médica tem sido progressivamente desvalorizada dentro da política pública de saúde mental. A ênfase excessiva em abordagens psicossociais, sem o devido suporte hospitalar e farmacológico, compromete a evolução clínica dos pacientes.
O modelo biomédico, que reconhece a natureza neurobiológica dos transtornos mentais e a necessidade de tratamentos médicos especializados, tem sido marginalizado por diretrizes que relegam o psiquiatra a um papel secundário, muitas vezes substituído por equipes multidisciplinares sem capacitação adequada para lidar com casos complexos .
O Programa de Volta Para Casa, citado no relatório como um exemplo de sucesso na desinstitucionalização, não apresenta evidências concretas de efetividade na reabilitação de pacientes psiquiátricos graves. A falta de acompanhamento médico contínuo, associada à precariedade de muitas residências terapêuticas, expõe esses indivíduos a um alto risco de recaída e marginalização. Dados internacionais indicam que programas semelhantes, quando não adequadamente estruturados, resultam em desfechos negativos para os pacientes, incluindo maior exposição à violência urbana e ao abuso de substâncias .
A atual política de saúde mental no Brasil ignora evidências epidemiológicas e compromete a assistência a uma população extremamente vulnerável. A psiquiatria, como campo médico, precisa ser reafirmada dentro do SUS, assegurando a disponibilidade de leitos hospitalares adequados, acompanhamento médico especializado e uma rede de cuidados que integre de modo adequado e orgânico a assistência comunitária e hospitalar.
A redução de leitos psiquiátricos e a consequente deterioração dos cuidados prestados resultam em consequências devastadoras para pacientes e suas famílias. A revisão do modelo vigente é urgente e deve ser guiada por evidências científicas e não por diretrizes ideológicas que negligenciam a realidade clínica e dados da psiquiatria moderna.
Garantir um modelo equilibrado de assistência psiquiátrica não é apenas uma questão técnica, mas um compromisso essencial com a dignidade humana. A saúde mental deve ser tratada como uma prioridade estruturante das políticas públicas, e não como um aspecto secundário do planejamento econômico.
Um sistema de saúde eficiente deve integrar a assistência comunitária e hospitalar de forma complementar, garantindo que todos os pacientes recebam o cuidado adequado. A reformulação do atual modelo, baseada em evidências científicas, é urgente para evitar o agravamento da crise assistencial, e garantir que a saúde mental seja, de fato, um direito acessível a todos .
1. Brasil, Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Especializada em Saúde, Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Saúde Mental em Dados. 13. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2024. https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-mental/saude-mental-em-dados/saude-mental-em-dados-edicao-no-13-fevereiro-de-2025/view
2. World Health Organization. Mental health Atlas 2020. Geneva: World Health Organization; 2021. https://www.who.int/publications/i/item/9789240036703
3. Thornicroft G, Tansella M. Components of a modern mental health service: a pragmatic balance of community and hospital care: overview of systematic evidence. Br J Psychiatry. 2004;185:283-90. https://doi.org/10.1192/bjp.185.4.283 PMID:15458987
4. Nordentoft M, Wahlbeck K, Hällgren J, Westman J, Osby U, Alinaghizadeh H, Gissler M, Laursen TM. Excess mortality, causes of death and life expectancy in 270,770 patients with recent onset of mental disorders in Denmark, Finland and Sweden. PLoS One. 2013;8(1):e55176. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0055176 PMID:23372832 - PMCID:PMC3555866
5. Insel TR. Rethinking schizophrenia. Nature. 2010;468(7321):187-93. https://doi.org/10.1038/nature09552 PMID:21068826
6. World Health Organization. Health for all: transforming economies to deliver what matters - final report. Geneva: World Health Organization; 2023. https://cdn.who.int/media/docs/default-source/council-on-the-economics-of-health-for-all/council-eh4a_finalreport_web.pdf?sfvrsn=a6505c22_5&download=true