Filiação dos autores:
1 [Graduando, Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil]
Editor-chefe responsável pelo artigo: Marsal Sanches
Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: Felismino RM [1, 3, 5, 6, 7, 12, 13, 14]
Conflito de interesses: declaram não haver
Fonte de financiamento: declaram não haver
Parecer CEP: não se aplica.
Recebido em: 12/03/2025 | Aprovado em: 16/05/2025 | Publicado em: 20/05/2025
Como citar: Felismino RM. Esquizofrenia e direito civil: repercussões médico-jurídicas à luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Debates Psiquiatr. 2025;15:1-17. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2025.v15.1443
Introdução: A promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência ( Lei nº 13.146/2015) reformulou profundamente o conceito de capacidade civil no Brasil, promovendo a inclusão e priorizando a autonomia dos indivíduos com deficiência. A nova legislação alterou a teoria das capacidades no Código Civil, eliminando a incapacidade absoluta para pessoas com deficiência e restringindo-a aos menores de 16 anos. No entanto, essa mudança gerou debates sobre os impactos dessa presunção de capacidade civil plena, especialmente para indivíduos com transtornos mentais graves, como a esquizofrenia. Objetivo: Analisa criticamente a aplicação da norma, argumentando que a ausência do critério do discernimento pode comprometer a proteção de indivíduos cuja capacidade de tomada de decisão está significativamente prejudicada. Método: Revisão narrativa de literatura interdisciplinar, com base em estudos das áreas de psicologia, especialmente psicologia comportamental e neuropsicologia e psiquiatria, examinando a evolução da conceituação clínica da esquizofrenia e sua compreensão atual na psiquiatria contemporânea. Resultados: A literatura psiquiátrica demonstra que a esquizofrenia, sobretudo em seus episódios agudos, provoca déficits cognitivos e executivos, dificultando a avaliação de riscos e a percepção da realidade. Conclusão: Sustenta-se que a exclusão do discernimento como critério para a aferição da capacidade civil resulta em um vácuo normativo que expõe essas pessoas a vulnerabilidades jurídicas e sociais. Propõe-se a revisão do modelo atual, com a reintegração do critério do discernimento ao ordenamento jurídico como forma de compatibilizar autonomia e proteção. Apenas por meio deste ajuste será possível garantir maior segurança jurídica e respeito à realidade psiquiátrica dos indivíduos acometidos por transtornos mentais severos.
Palavras-chave: esquizofrenia, psicopatologia, saúde mental, discriminação psicológica, discernimento, capacidade civil, Estatuto da Pessoa com Deficiência, transtornos mentais.
Introduction: The enactment of the Brazilian Law for the Inclusion of Persons with Disabilities (Law No. 13.146/2015) profoundly restructured the concept of civil capacity in Brazil, promoting inclusion and prioritizing the autonomy of individuals with disabilities. The new legislation changed the theory of legal capacity in the Civil Code, eliminating absolute incapacity for persons with disabilities and restricting it to those under 16 years of age. However, this reform has generated debate about the effects of presuming full legal capacity, particularly in individuals with severe mental disorders such as schizophrenia. Objective: This article critically analyzes the application of the statute, arguing that the exclusion of discernment as a criterion may compromise the protection of individuals whose decision-making abilities are significantly impaired. Method: A narrative review of interdisciplinary literature focusing on studies in psychiatry, neuropsychology, and behavioral psychology that address the evolution and current understanding of schizophrenia. Results: Psychiatric literature demonstrates that schizophrenia, especially during acute episodes, causes cognitive and executive deficits that impair reality perception and risk evaluation. Conclusion: It is argued that excluding discernment as a legal criterion for assessing civil capacity creates a normative gap that exposes these individuals to legal and social vulnerabilities. Therefore, the article proposes a revision of the current model, advocating for the reintegration of the criterion of discernment into the legal system as a means of reconciling autonomy and protection. Only through this adjustment will it be possible to ensure greater legal security and respect for the psychiatric reality of individuals with severe mental disorders.
Keywords: schizophrenia, psychopathology, mental health, psychological discrimination, discernment, Brazilian Law for the Inclusion of Persons with Disabilities, mental diseases.
Introducción: La promulgación de la Ley Brasileña de Inclusión de las Personas con Discapacidad (Ley n.º 13.146/2015) reformuló profundamente el concepto de capacidad civil en Brasil, promoviendo la inclusión y priorizando la autonomía de las personas con discapacidad. La nueva legislación modificó la teoría de las capacidades en el Código Civil, eliminando la incapacidad absoluta para las personas con discapacidad y restringiéndola exclusivamente a los menores de 16 años. Sin embargo, este cambio ha generado debates sobre los efectos de la presunción de plena capacidad civil, especialmente en personas con trastornos mentales graves como la esquizofrenia. Objetivo: Analiza críticamente la aplicación de la norma, argumentando que la exclusión del discernimiento como criterio puede comprometer la protección de individuos cuya capacidad de tomar decisiones se encuentra gravemente afectada. Método: Revisión narrativa de la literatura interdisciplinaria, con énfasis en estudios de psiquiatría, neuropsicología y psicología del comportamiento que abordan la evolución y la concepción actual de la esquizofrenia. Resultados: La literatura psiquiátrica demuestra que la esquizofrenia, sobre todo durante los episodios agudos, provoca déficits cognitivos y ejecutivos que afectan la percepción de la realidad y la evaluación de riesgos. Conclusión: Se sostiene que la exclusión del discernimiento como criterio jurídico para evaluar la capacidad civil genera un vacío normativo que expone a estas personas a vulnerabilidades jurídicas y sociales. En consecuencia, se propone una revisión del modelo actual, con la reintegración del criterio del discernimiento al ordenamiento jurídico como forma de conciliar autonomía y protección. Solo mediante este ajuste será posible garantizar mayor seguridad jurídica y respeto a la realidad psiquiátrica de las personas con trastornos mentales severos.
Palabras clave: esquizofrenia, psicopatología, salud mental, discriminación psicológica, discernimiento, capacidad civil, Ley Brasileña de Inclusión de las Personas con Discapacidad, trastornos mentales.
A esquizofrenia é um transtorno psiquiátrico potencialmente crônico e debilitante, caracterizado por uma disfunção generalizada dos processos cognitivos, afetivos e perceptivos, frequentemente resultando em uma dissociação da realidade. Seu impacto vai além das manifestações psicóticas agudas, estendendo-se a comprometimentos no funcionamento social e na tomada de decisão .
Diante disso, propõe-se examinar criticamente a tensão entre critérios jurídicos e médicos no contexto da esquizofrenia, especialmente no que tange à capacidade civil de pessoas diagnosticadas com esse transtorno após a vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Este estudo adota o método de revisão da literatura médica e jurídica, com foco nos impactos da esquizofrenia sobre a capacidade civil e suas implicações jurídicas após a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Ressalta-se que, até o momento, não foram identificados na literatura científica trabalhos que abordem diretamente essa interseção entre esquizofrenia, capacidade civil e a nova legislação brasileira, o que evidencia a originalidade e a relevância da presente análise.
Este trabalho adota o método de revisão narrativa de literatura interdisciplinar, com base em estudos das áreas de psicologia, especialmente psicologia comportamental e neuropsicologia e psiquiatria, examinando a evolução da conceituação clínica da esquizofrenia e sua compreensão atual na psiquiatria contemporânea. Esses referenciais clínicos e neurobiológicos são então confrontados com os fundamentos jurídicos introduzidos pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, com o propósito de avaliar em que medida a presunção de capacidade civil plena, estabelecida pela nova legislação, se mostra compatível com a realidade funcional e cognitiva dos indivíduos acometidos por transtornos mentais graves. Trata-se, portanto, de uma abordagem teórico-analítica que integra referenciais médicos, psicológicos e jurídicos, com vistas à compreensão aprofundada das repercussões normativas da esquizofrenia sobre o exercício da autonomia civil.
Desde a Antiguidade, a compreensão dos transtornos psicóticos passou por diferentes paradigmas. No período pré-moderno, manifestações de delírios e alucinações eram frequentemente associadas a possessões demoníacas ou punições divinas, resultando em tratamentos baseados na exorcização e no isolamento dos indivíduos afetados . Com o advento da psiquiatria científica, no século XIX, os transtornos mentais começaram a ser sistematicamente categorizados.
Emil Kraepelin (1896) foi um dos pioneiros na distinção da demência precoce (hoje esquizofrenia) de outros transtornos psiquiátricos, como o transtorno afetivo bipolar. Ele descreveu sua progressão como uma deterioração cognitiva progressiva, diferenciando-a da psicose maníaco-depressiva, caracterizada por episódios distintos de mania e depressão . Posteriormente, Eugen Bleuler cunhou o termo "esquizofrenia", destacando que o transtorno não se limitava a um processo de deterioração inevitável, mas envolvia um conjunto de sintomas fundamentais:
Associativismo frouxo: dificuldade na conexão lógica entre ideias.
Afetividade inadequada: respostas emocionais desproporcionais ao contexto.
Ambivalência: coexistência de emoções contraditórias em relação a uma mesma situação.
Autismo: retraimento do indivíduo para um mundo interno dissociado da realidade.
Ao longo do século XX, a concepção de esquizofrenia continuou a se modificar. Kurt Schneider descreveu os sintomas de primeira ordem (first-rank symptoms) da esquizofrenia em sua obra Clinical Psychopathology (1959) , indicando que esses sintomas – incluindo alucinações auditivas comentadoras, roubo do pensamento e imposição de ideias – eram altamente sugestivos do transtorno, mas não necessariamente exclusivos a ele. Outrossim, com o avanço da neurociência e da psiquiatria fenomenológica, tornou-se evidente que os chamados sintomas de primeira ordem, descritos por Schneider, não são exclusivos da esquizofrenia, podendo também manifestar-se em outros transtornos psicóticos, como o transtorno esquizoafetivo e algumas formas graves de transtorno bipolar com sintomas psicóticos. Estudos posteriores demonstraram que a presença desses sintomas deve ser analisada dentro de um espectro mais amplo, levando em consideração fatores clínicos, neurobiológicos e contextuais na formulação diagnóstica .
Atualmente, os critérios diagnósticos para a esquizofrenia são estabelecidos pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – Fifth Edition, Text Revision (DSM-5-TR) e pela Classificação Internacional de Doenças – 11ª edição (CID-11) . O DSM-5-TR, publicado pela American Psychiatric Association, em 2022, requer a presença de dois ou mais sintomas característicos durante um período significativo de um mês, com sinais contínuos da perturbação persistindo por pelo menos seis meses. Já a CID-11, publicada pela Organização Mundial da Saúde, em 2019, também enfatiza a necessidade de sintomas persistentes e uma deterioração funcional significativa. Os critérios do DSM-5 exigem a presença de pelo menos dois dos seguintes sintomas, sendo pelo menos um deles obrigatoriamente um sintoma positivo:
A CID-11 segue diretrizes semelhantes, mas enfatiza uma abordagem dimensional, considerando que a sintomatologia da esquizofrenia pode variar em intensidade ao longo do tempo, em oposição a categorias fixas.
A esquizofrenia é amplamente reconhecida como uma condição de base neurobiológica multifatorial, envolvendo alterações genéticas, neurodesenvolvimentais e disfunções em circuitos cerebrais específicos. Howes e Kapur explicam que os principais sistemas neurais implicados são o dopaminérgico, o glutamatérgico e o gabaérgico, todos com papel fundamental nos processos cognitivos superiores, incluindo a tomada de decisão.
Sistema dopaminérgico: A hipótese dopaminérgica sugere um desequilíbrio funcional entre diferentes vias dopaminérgicas. Enquanto a hiperatividade na via mesolímbica está associada aos sintomas positivos da esquizofrenia, como delírios e alucinações, a hipoatividade na via mesocortical, particularmente no córtex pré-frontal, pode estar relacionada a déficits cognitivos e sintomas negativos) . Considerando que o córtex pré-frontal é uma região-chave na avaliação de riscos e recompensas, esse déficit dopaminérgico compromete diretamente a tomada de decisão, prejudicando o julgamento e a capacidade de adaptar comportamentos frente a novos estímulos.
Sistema glutamatérgico: Evidências apontam para um comprometimento da função do receptor NMDA, crucial para a plasticidade sináptica e para o aprendizado associativo. A hipoatividade glutamatérgica, especialmente nos interneurônios inibitórios, está relacionada à desorganização cognitiva e à incapacidade de integrar informações de maneira eficiente . Esse prejuízo interfere na avaliação de consequências e na flexibilidade cognitiva, componentes centrais da tomada de decisão em contextos complexos e socialmente relevantes.
Sistema gabaérgico: Alterações no sistema gabaérgico, sobretudo a redução da expressão da enzima GAD67 em interneurônios que expressam parvalbúmina, afetam a inibição neural no córtex pré-frontal . Tal déficit desregula a atividade oscilatória e a sincronização de redes neurais envolvidas na manutenção e manipulação de informações, contribuindo para déficits na memória de trabalho, no controle inibitório e, por consequência, em decisões racionais e contextualmente apropriadas .
Alterações estruturais: Estudos de neuroimagem indicam redução volumétrica no córtex pré-frontal, hipocampo e tálamo em indivíduos com esquizofrenia, comprometendo funções relacionadas à regulação emocional e ao controle cognitivo .
A concepção de psicose sofreu transformações significativas ao longo do tempo. Inicialmente, era vista como uma desconexão abrupta da realidade, caracterizada exclusivamente por delírios e alucinações. No entanto, abordagens mais recentes indicam que a psicose é um espectro, variando em intensidade e duração, podendo coexistir com períodos de lucidez parcial .
Essa compreensão é crucial no âmbito jurídico, pois indivíduos diagnosticados com esquizofrenia podem apresentar momentos de discernimento, intercalados com episódios de desorganização severa do pensamento e da percepção. Estudos indicam que, mesmo em fases de remissão, déficits cognitivos persistem, impactando funções executivas como controle inibitório, planejamento e julgamento moral .
Além disso, a esquizofrenia apresenta um impacto direto na tomada de decisão, pois a fragmentação da realidade percebida pode levar a escolhas baseadas em uma lógica distorcida, especialmente nos casos de delírios persecutórios. Dessa forma, a avaliação da imputabilidade de indivíduos esquizofrênicos deve considerar não apenas a presença de psicose ativa, mas também os comprometimentos cognitivos subjacentes, que podem influenciar sua capacidade de discernimento e autocontrole, mesmo em períodos de aparente normalidade .
A tomada de decisão é um processo cognitivo fundamental, no qual o indivíduo avalia opções, antecipa consequências e escolhe alternativas com base em experiências passadas e objetivos futuros . Estudos indicam que a atividade do córtex pré-frontal, especialmente nas regiões dorsolateral e orbitofrontal, desempenhaum papel fundamental na tomada de decisões, sendo modulada por neurotransmissores como dopamina e glutamato . Alterações nessa região podem resultar em dificuldades na avaliação de riscos e recompensas, impulsividade e menor flexibilidade cognitiva, impactando negativamente a capacidade de tomar decisões adaptativas .
Além disso, a presença de sintomas psicóticos, especialmente delírios persecutórios e alucinações auditivas imperativas, pode levar a decisões baseadas em falsas premissas sobre a realidade, tornando o julgamento gravemente distorcido .
Pessoas diagnosticadas com esquizofrenia frequentemente apresentam déficits cognitivos severos, afetando áreas fundamentais do funcionamento mental, tais como:
Estudos demonstram que a esquizofrenia compromete a tomada de decisão em diversos níveis, desde escolhas rotineiras até comportamentos que envolvem planejamento e avaliação moral . A disfunção executiva característica da doença pode levar tanto a uma tomada de decisão impulsiva – baseada na desregulação do sistema de recompensa – quanto a um comportamento excessivamente hesitante, em razão da incerteza gerada pelos déficits cognitivos .
A literatura sugere que a base neurobiológica desse comprometimento está na disfunção do circuito pré-frontal-límbico, responsável pelo processamento de riscos e recompensas . Esse circuito inclui estruturas como o córtex pré-frontal (dorsolateral e orbitofrontal), o córtex cingulado anterior, o tálamo, o córtex parietal e o núcleo caudado, todas implicadas na regulação da impulsividade e do controle inibitório e tomada de decisão .
Delírios persecutórios são manifestações psicóticas prevalentes na esquizofrenia e exercem influência direta sobre a tomada de decisão. Indivíduos acometidos por esse tipo de delírio acreditam firmemente estar sendo vigiados, ameaçados ou perseguidos, muitas vezes reinterpretando estímulos neutros como evidências inequívocas de uma conspiração contra si . Essa distorção da realidade pode motivar comportamentos defensivos ou agressivos, cuja aparência de racionalidade interna não se traduz em discernimento jurídico objetivo .
A psicopatologia forense indica que essa percepção delirante pode comprometer o juízo de ilicitude e a autodeterminação, uma vez que o agente, em delírio, pode atuar sob a convicção de que está se protegendo contra um mal iminente. Nesses casos, a conduta pode apresentar alguma organização externa, como uma sequência de atos ou escolha de meios, mas tal "planejamento" não se confunde com a deliberação consciente de um agente imputável. O discernimento está comprometido pela base psicótica, dificultando sobremaneira a avaliação de sua responsabilidade penal .
Esse comprometimento da realidade subjetiva, entretanto, não repercute apenas na esfera penal. Também no âmbito do Direito Civil, a presença de delírios persecutórios pode comprometer a capacidade para a prática válida de atos jurídicos, sobretudo quando afetado o discernimento necessário à formação de vontade livre, consciente e esclarecida. Assim, a análise da imputabilidade penal e da capacidade civil, nos casos envolvendo indivíduos com transtorno esquizofrênico, deve ser conduzida à luz de critérios técnico-científicos e saberes interdisciplinares. Somente por essa via é possível aferir, com maior precisão, a real capacidade e a responsabilidade do agente perante o ordenamento jurídico.
Kahneman propõe que a mente humana opera a partir de dois sistemas cognitivos distintos: o Sistema 1, intuitivo, automático e rápido, e o Sistema 2, analítico, deliberado e controlado, que demanda esforço consciente. Na esquizofrenia, as alterações neuroquímicas, como a hiperatividade dopaminérgica mesolímbica e a disfunção glutamatérgica, afetam diretamente os sistemas responsáveis pela tomada de decisão. É possível inferir que esses desequilíbrios favorecem o predomínio do Sistema 1, caracterizado por respostas rápidas, automáticas e intuitivas, em detrimento do Sistema 2, responsável por processos deliberativos, analíticos e controlados, especialmente durante episódios psicóticos.
Esse desequilíbrio favorece respostas impulsivas, decisões pouco refletidas e aumento da suscetibilidade a vieses cognitivos, especialmente quando em contexto psicótico.
Dessa forma, ainda que o esquizofrênico possa, ocasionalmente, executar condutas que aparentem intencionalidade ou sequência de atos, essas ações não resultam de planejamento racional nos moldes jurídicos usuais. O que há, frequentemente, é uma ação orientada por crenças delirantes, marcada por juízo de realidade comprometido, pensamento desorganizado e prejuízo das funções executivas superiores. Tais características impactam diretamente a imputabilidade penal, exigindo perícia cuidadosa e contextualizada para aferição da responsabilidade.
No mesmo sentido, o direito civil também é chamado a considerar tais fatores na análise da validade dos atos jurídicos eventualmente praticados por indivíduos em estado psicótico. O predomínio de decisões impulsivas e não deliberadas compromete a formação de uma vontade juridicamente relevante, sobretudo nos casos em que a autonomia é substituída por automatismos cognitivos dissociados da realidade.
O prejuízo no discernimento tem historicamente implicações diretas na capacidade civil das pessoas com esquizofrenia. Antes da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), o código civil de 2002 previa, em sua redação original do art. 3º, que eram absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos”. Essa norma refletia o entendimento jurídico tradicional de que o discernimento era condição essencial para o exercício da autonomia civil.
Como ensina Caio Mário da Silva Pereira , discernimento é a faculdade de compreender o significado do próprio ato e de querer, de modo consciente, os efeitos jurídicos que dele decorrem, ou seja, um juízo lúcido que conecta intenção e consequência dentro de um mesmo gesto volitivo.
Com a promulgação do Estatuto, houve uma reformulação profunda na teoria das capacidades no ordenamento jurídico brasileiro, com ênfase na inclusão e na autodeterminação das pessoas com deficiência. A nova redação do art. 3º passou a restringir a incapacidade absoluta aos menores de 16 anos, presumindo, assim, a plena capacidade civil das pessoas com deficiência. Contudo, quando a deficiência comprometer a manifestação da vontade, admite-se a declaração de incapacidade relativa. O critério do discernimento foi, portanto, substituído pelo critério da manifestação da vontade.
Essa mudança legislativa gerou intensos debates. Parte da doutrina aponta que a proteção jurídica dos indivíduos com graves transtornos mentais, como a esquizofrenia, foi prejudicada pela nova orientação. A professora Mariana Lara Alves argumenta que a ênfase excessiva na autonomia jurídica pode comprometer a segurança e a dignidade dessas pessoas, especialmente quando há déficits cognitivos severos que limitam a compreensão e a previsão das consequências dos próprios atos. Ela propõe a restauração do critério do discernimento como elemento central para a aferição da incapacidade de fato.
De fato, conforme exposto neste trabalho, a esquizofrenia frequentemente compromete, de modo profundo e persistente, as funções mentais superiores, com prejuízos à percepção da realidade, ao juízo crítico e à capacidade de tomada de decisão. Alucinações, delírios, desorganização do pensamento e alterações cognitivas, especialmente nas funções executivas e no pensamento abstrato, podem impactar negativamente a formação e a manifestação da vontade. A expressão volitiva pode até existir formalmente, mas descolada da realidade, sem base racional ou coerente.
Nesse contexto, a substituição do discernimento pela manifestação de vontade como critério normativo não apenas enfraquece a proteção jurídica, como também ignora a dimensão clínica da esquizofrenia. Além disso, é importante destacar que, embora a legislação brasileira não declare expressamente que a esquizofrenia constitui uma deficiência, ela o é sob o ponto de vista funcional e clínico.
À luz do que foi demonstrado, é possível concluir que a esquizofrenia configura, nos termos do art. 3º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, uma forma de deficiência. Trata-se de um impedimento de longo prazo de natureza mental que, em interação com barreiras sociais, pode obstruir a participação plena e efetiva da pessoa na sociedade, em igualdade de condições com as demais.
Esse desencontro entre os referenciais do Direito e da Medicina não é meramente técnico, mas ideológico. O movimento jurídico de empoderamento, influenciado por pautas de direitos humanos e inclusão, tem adotado uma retórica que frequentemente nega a própria noção de deficiência. Sob esse viés, o “deficiente não é deficiente” e o “deficiente não é incapaz”, mesmo quando há evidências clínicas robustas em sentido contrário. Trata-se de uma tentativa de normatização espúria que pretende sobrepor abstrações jurídicas à prática médica e à realidade psíquica dos sujeitos, operando por meio de uma homogeneização artificial e perigosa. Esse conflito de racionalidades entre o jurídico-estatal e o médico-científico impacta diretamente o ordenamento jurídico, distorcendo as noções de capacidade, autonomia e vulnerabilidade.
Portanto, ainda que o Estatuto da Pessoa com Deficiência represente avanço no reconhecimento da dignidade das pessoas com deficiência, sua aplicação genérica, desconsiderando o grau de discernimento em casos de transtornos mentais severos como a esquizofrenia, pode gerar situações de grave desproteção jurídica. A presunção de capacidade, nesses casos, ignora evidências clínicas de incapacidade prática e pode expor os indivíduos a riscos, manipulações e prejuízos patrimoniais ou existenciais. Como ensina a filosofia aristotélica, “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade” .
Assim, defendemos a necessidade de reinserção do discernimento como critério jurídico para a aferição da capacidade civil, não como forma de estigmatização, mas como mecanismo de proteção eficaz, equilibrando a autonomia com a vulnerabilidade real. Tal reposicionamento se justifica não apenas por fundamentos jurídicos e éticos, mas também à luz das evidências neuropsiquiátricas que demonstram como a esquizofrenia pode comprometer a tomada de decisões de maneira grave e contínua.
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