Filiação dos autores:
1 [Doutorando, Saúde Coletiva, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil]
2, 8, 9 [Professor, Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP, São Paulo, São Paulo, Brasil]
3 [Pesquisadora, Departamento de Psicologia, Glasgow Caledonian University, Glasgow, UK]
4 [Doutoranda, Psiquiatria e Psicologia Médica, Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP, São Paulo, São Paulo, Brasil]
5 [Coordenadora, Equipe Técnica, Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, SPDM, São Paulo, SP, Brasil]
6 [Gerente de Enfermagem, Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, SPDM, São Paulo, SP, Brasil]
7 [Professora, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, SP, Brasil]
Editor-chefe responsável pelo artigo: César Augusto Trinta Weber
Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: Seabra DS [1, 2, 3, 5, 6, 13, 14]; Madruga CS [1, 2, 3, 5, 6, 10, 14]; Canfield M [6, 10, 14]; Barreto KIS [1, 2, 6, 14]; Couto K [3, 14]; Araujo AC [1, 2, 14]; Miziara CSMG [14]; Cordeiro Q [1, 7, 10, 14]; Laranjeira R [7, 10, 14].
Conflito de interesses: declaram não haver.
Fonte de financiamento: declaram não haver
Parecer CEP: Universidade Federal de São Paulo. 39437220.4.0000.5505
Recebido em: 21/06/2025 | Aprovado em: 28/09/2025 | Publicado em: 17/10/2025
Como citar: Seabra DS, Madruga CS, Canfield M, Barreto KIS, Couto K, Araujo AC, Miziara CSMG, Cordeiro Q, Laranjeira R. Consultório na rua e demanda espontânea na “Cracolândia”: análise do perfil de pacientes em serviço especializado. Debates Psiquiatr.2025;15:1-19. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2025.v15.1476
Introdução: o uso de substâncias é um desafio em grandes metrópoles, sobretudo em Cenas Abertas de Uso, como a “Cracolândia” em São Paulo. Este estudo teve como objetivo comparar o perfil de pacientes encaminhados pelas equipes do Consultório na Rua (CnaR) com o daqueles que buscaram tratamento espontaneamente em um serviço especializado localizado na "Cracolândia". Método: trata-se de um estudo observacional retrospectivo que analisou prontuários de 9.053 atendimentos no HUB de Cuidado em Crack e Outras Drogas entre Junho de 2024 a Janeiro 2025. Foram coletados dados sociodemográficos, indicadores de uso e de saúde mental. Resultado: o CnaR mostrou-se eficaz em encaminhar uma maior proporção de pessoas em situação de rua (74,22%), provenientes da "Cracolândia" (82,50%) e indivíduos pretos (17,41%) e pardos (55,82%), demonstrando sua capacidade de alcançar grupos de maior vulnerabilidade. Contudo, mulheres não foram adequadamente acessadas. Observou-se que indivíduos encaminhados pelo CnaR apresentaram maior prevalência de crack (81,01%) e maconha (62,42%), enquanto indivíduos que chegaram ao serviço por demanda espontânea, apresentaram maior prevalência de uso de canabinoides sintéticos (20,68%). Não houve, porém, diferença significativa em indicadores de suicídio, abstinência e sintomas psicóticos entre os grupos. Conclusão: os resultados deste estudo indicam que o CnaR tem alcançado grupos diversos em seu trabalho de abordagem e encaminhamento. No entanto, os achados também evidenciam a importância de aprimorar a sensibilidade e a capacidade de acolhimento às mulheres.
Palavras-chave: pessoa em situação de rua, consultório na rua, transtorno relacionado ao uso de substâncias, crack, cracolândia.
Introduction: Substance use presents a significant challenge in large metropolises, especially in Open Drug Scenes like "Cracolândia" in São Paulo. This study aimed to compare the profile of patients referred by the Street Clinic (Consultório na Rua - CnaR) teams with those who sought treatment spontaneously at a specialized service located in "Cracolândia" Method: This was a retrospective observational study that analyzed 9,053 patient records from the Crack and Other Drugs Care HUB between June 2024 and January 2025. Sociodemographic data, substance use indicators, and mental health indicators were collected. Results: CnaR proved effective in referring a higher proportion of homeless individuals (74.22%), those from "Cracolândia" (82.50%), and Black (17.41%) and Pardo (55.82%) individuals, demonstrating its capacity to reach highly vulnerable groups. However, women were not adequately accessed. It was observed that individuals referred by CnaR showed a higher prevalence of crack (81.01%) and marijuana (62.42%) use, while individuals who arrived at the service by spontaneous demand showed a higher prevalence of synthetic cannabinoid use (20.68%). There was no significant difference, however, in indicators of suicide, abstinence, and psychotic symptoms between the groups. Conclusion: The results of this study indicate that CnaR has reached diverse groups in its outreach and referral work. Nevertheless, the findings also highlight the importance of improving sensitivity and the capacity to welcome women.
Keywords: homeless person, street clinic, substance use disorder, crack, cracolandia.
Introducción: El uso de sustancias es un desafío en las grandes metrópolis, especialmente en Escenarios Abiertos de Consumo, como la "Cracolândia" en São Paulo. Este estudio tuvo como objetivo comparar el perfil de los pacientes derivados por los equipos de Consultorio na Rua (CnaR) con el de aquellos que buscaron tratamiento espontáneamente en un servicio especializado ubicado en la "Cracolândia". Método: Se trata de un estudio observacional retrospectivo que analizó 9.053 expedientes de atención en el HUB de Cuidado en Crack y Otras Drogas entre junio de 2024 y enero de 2025. Se recolectaron datos sociodemográficos, indicadores de consumo y de salud mental. Resultado: El CnaR demostró ser eficaz en la derivación de una mayor proporción de personas en situación de calle (74,22%), provenientes de la "Cracolândia" (82,50%) e individuos negros (17,41%) y pardos (55,82%), demostrando su capacidad para alcanzar grupos de mayor vulnerabilidad. Sin embargo, las mujeres no fueron adecuadamente alcanzadas. Se observó que los individuos derivados por el CnaR presentaron una mayor prevalencia de consumo de crack (81,01%) y marihuana (62,42%), mientras que los individuos que llegaron al servicio por demanda espontánea presentaron una mayor prevalencia de uso de cannabinoides sintéticos (20,68%). No hubo, sin embargo, diferencias significativas en los indicadores de suicidio, abstinencia y síntomas psicóticos entre los grupos. Conclusión: Los resultados de este estudio indican que el CnaR ha logrado alcanzar a grupos diversos en su trabajo de abordaje y derivación. Sin embargo, los hallazgos también evidencian la importancia de mejorar la sensibilidad y la capacidad de acogida a las mujeres.
Palabras clave: persona en situación de calle, consultorio en la calle, trastorno por uso de sustancias, crack, cracolandia.
O Consultório na Rua (CnaR), criado em 2012, tem como objetivo ser a equipe de saúde especializada no cuidado da População em Situação de Rua (PSR) . Sua criação integra um amplo movimento institucional de aquisição de direitos, cujo principal marco legal consiste na criação da Política Nacional para PSR pelo decreto nº 7.053/2009 . Em 2023, os registros oficiais contabilizaram 221.113 cidadãos em situação de rua no Brasil, dos quais a cidade de São Paulo concentra cerca de um quarto (54.812) do total .
A atuação do CnaR deve pautar-se pela intersetorialidade, alinhando-se à diversidade de necessidades de saúde e sociais das PSR . Uma conhecida dificuldade enfrentada são as diversas barreiras institucionais e individuais que diminuem o acesso à saúde das pessoas que vivem nas ruas . O CnaR possui como uma de suas atribuições a tarefa de vinculação , com objetivo de estabelecer as pontes necessárias ao cuidado em diferentes tipos de serviço.
Um aspecto de particular complexidade à saúde da PSR está associado ao uso de substâncias (álcool e outras drogas). As consequências relacionadas ao uso de substâncias - por exemplo, desenvolvimento de transtornos mentais, complicações físicas, ruptura de vínculos familiares, afastamento de redes de apoio - são elementos que contribuem com estigma e dificuldade de acesso , de modo que seu cuidado é um dos eixos de atuação do CnaR . Nas PSR, é comum o uso de substâncias em áreas urbanas abertas. Esse uso frequentemente ocorre em locais com concentração de pessoas, o que caracteriza as chamadas Cenas Abertas de Uso (CAU), fenômeno observado em grandes metrópoles de diversos países . O Brasil possui diversas CAU, sendo a de São Paulo a maior delas , cujo nome popular é “Cracolândia”, trata-se de um território marcado pela vulnerabilidade .
As equipes do CnaR atuam na região da CAU, oferecendo cuidado e encaminhamentos para serviços de saúde e assistência social. Para casos de maior gravidade no uso de substâncias, um dos encaminhamentos é para o HUB de Cuidado em Crack e Outras Drogas. Esse serviço, próximo à CAU, avalia situações graves, como síndromes de abstinência ou intoxicação, e recebe pacientes tanto das equipes de abordagem de rua quanto por demanda espontânea.
Esta pesquisa utilizou dados de atendimentos do HUB. Seu objetivo foi comparar os perfis clínico-demográficos de pacientes encaminhados pelo CnaR e daqueles que buscaram atendimento espontâneo no HUB, com foco em características sociodemográficas, padrões de consumo e indicadores de saúde mental. Ao identificar semelhanças e diferenças entre esses perfis, busca-se avaliar em que medida a atuação do CnaR contribui para ampliar o acesso de populações vulneráveis. Tal compreensão é essencial para qualificar as estratégias de cuidado e aprimorar a articulação entre os serviços da rede intersetorial.
O estudo empregou um desenho observacional retrospectivo. Os participantes foram todos os pacientes que realizaram avaliação inicial no HUB de Cuidado em Crack e Outras Drogas entre Junho de 2024 e Janeiro 2025. Foram analisados dados extraídos dos prontuários referentes à avaliação de entrada no serviço, procedimento padronizado e obrigatório para todos os pacientes. Essa avaliação é realizada pela equipe de enfermagem. O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (CAAE: 39437220.4.0000.5505).
A amostra foi composta por um total de 9053 atendimentos realizados no período. Foram incluídos apenas os casos em que foi possível realizar a avaliação inicial do serviço. A amostra foi dividida em dois grupos (Abordagem e Busca Espontânea) a partir da variável de entrada no serviço. Os pacientes encaminhados pelo CnaR compareciam ao registro de abertura de atendimento acompanhados dos abordadores, momento em que era feito o registro do encaminhamento pelo CnaR. Foram excluídos da análise os atendimentos em que a aplicação da avaliação foi inviabilizada por condições clínicas agudas, como intoxicação grave, síndromes de abstinência grave, agitação psicomotora intensa ou outras situações de saúde que impediram a condução da entrevista no momento do acolhimento.
O instrumento incluiu os seguintes eixos avaliativos: perfil sociodemográfico, consumo de substâncias e indicadores de saúde mental. O perfil sociodemográfico e o consumo de substâncias foram avaliado com base no protocolo de entrevista do Levantamento de Cenas de Uso em Capitais (LECUCA): gênero (opções: homem cis, homem trans, mulher cis, mulher trans, não binário); idade (numérica, aberta); cor da pele (opções: branca, preta, parda, amarela, indígena); moradia (opções: moradia fixa, moradia transitória, situação de rua); proveniência da CAU (opções: não, sim) e frequência na CAU (opções: nunca; sim, há mais de um ano; sim, há menos de um ano).
Foram avaliados indicadores de risco de saúde mental: tentativa de suicídio (opções: não, sim há mais de 1 ano, sim há menos de 1 ano); intoxicação (opções: não/sim). As prevalências de uso de substâncias (crack, cocaína, maconha, canabinoide sintético, solvente inalante e heroína) foram avaliadas no último ano (opções: não, sim há menos de 1 ano).
Avaliou-se o uso do tabaco, e o álcool foi abordado com duas questões da escala Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT) : (1) quando bebe, quantas bebidas contendo álcool consome num dia normal? (dicotomizada em mais de 10 doses: sim/não) e (2) com que frequência consome seis bebidas ou mais numa única ocasião? (dicotomizada em diariamente ou quase diariamente: sim/não). A escala Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test (ASSIST) validada para o Brasil foi aplicada para todos que faziam uso de crack e/ou de cocaína. Indivíduos que usavam ambas substâncias tiveram o ASSIST calculado baseado na maior gravidade do padrão de uso. A versão utilizada do ASSIST é composta por oito itens que avaliam aspectos como: frequência de uso ao longo da vida e nos últimos três meses, problemas decorrentes do uso, preocupações expressas por pessoas próximas, prejuízos no desempenho de atividades cotidianas, tentativas malsucedidas de interromper ou reduzir o consumo, sensação de perda de controle (compulsão) e uso por via injetável. O ASSIST divide o padrão de uso em “baixo”, “médio” e “alto” risco, indicando o nível de intervenção recomendada . A variável de entrada do serviço foi definida a partir do acompanhamento ou não do paciente pela equipe do CnaR (sim/não). Todas as perguntas foram adaptadas à realidade do serviço e às especificidades culturais do território, visto que o questionário foi integrado à assistência como um protocolo de serviço para qualificá-la. O tempo médio de entrevista é de 15 a 20 minutos.
Os dados foram anonimizados, e as estatísticas descritivas foram calculadas utilizando frequências e porcentagens para dados categóricos e médias e desvios padrão para dados contínuos. A associação entre variáveis, de acordo com o tipo de chegada ao serviço (Abordagem ou Busca Espontânea), foi analisada utilizando testes de Qui-quadrado (χ2) de Pearson ou Exato de Fisher, conforme a distribuição da variável. Foi adotado um nível de significância estatística de 5% em todas as análises.
Os resultados sociodemográficos estão descritos no Quadro 1. A idade média foi de 37,5 anos (DP = 8,7) para o grupo CnaR e de 36,9 anos (DP = 9,4) para o grupo de busca espontânea. O gênero predominante é o de homens cisgênero, representando mais de 90% da amostra em ambos os grupos. Encontrou-se diferença estatisticamente significativa para a distribuição de cor de pele, moradia, proveniência e tempo de frequência na CAU.
A equipe de rua encaminhou maior proporção de pretos e pardos e menor proporção de brancos (p = 0,008). Acerca da moradia (p < 0,001), o grupo encaminhado pelo CnaR apresentou maior proporção de indivíduos em situação de rua (74,22% vs. 57,70%) e menor proporção de indivíduos com moradia fixa (7,84% vs. 23,47%). Embora ambos os grupos apresentem predominância de pacientes que frequentam a região da “Cracolândia”, a frequência em cenas abertas no último ano foi significativamente (p < 0,001) maior entre os pacientes encaminhados pelo CnaR (81,34%) em comparação com a demanda espontânea (58,35%). A análise da proveniência revelou que a maioria das pessoas encaminhadas pelo Consultório na Rua (82,50%) já estava na CAU antes de serem atendidas, em comparação com aproximadamente 30% daquelas que buscaram o serviço espontaneamente.
Quadro 2 descreve a prevalência de consumo de substâncias. Houve diferença significativa para o uso de crack, maconha e canabinoides sintéticos. Foi encontrada maior prevalência de crack (81,01%) e maconha (62,42%) no grupo encaminhado pelas equipes de rua, enquanto para canabinoides sintéticos (19,55%), houve maior prevalência no grupo de busca espontânea. O tabagismo teve elevada prevalência (mais de 80%) em ambos os grupos, sem diferença significativa. Os dois marcadores de gravidade de uso de álcool foram similares entre os grupos. Os indicadores de saúde mental (sinais de intoxicação, sintomas psicóticos e tentativa de suicídio) foram similares entre os grupos.
O Quadro 3 apresenta os níveis de gravidade relacionados ao uso de crack e/ou cocaína, indicando uma elevada proporção de indivíduos com necessidade de tratamento intensivo em ambos os grupos. Não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre os grupos na pontuação da escala ASSIST.
Os resultados da pesquisa apontam diferenças nas características sociodemográficas e na prevalência de uso de substâncias entre pacientes encaminhados pelo CnaR e por aqueles que procuraram atendimento espontaneamente. Essa evidência indica a capacidade do CnaR de alcançar um perfil de indivíduos distinto daqueles que buscam tratamento para uso de substâncias por iniciativa própria. Entretanto, marcadores de risco de saúde mental e de gravidade relacionados ao uso de crack e/ou cocaína não apresentaram diferenças significativas. Em ambos os grupos, o padrão de uso de crack e cocaína foi similar, com mais de 90% dos indivíduos apresentando indicação para tratamento intensivo, indicando gravidade clínica semelhante.
A maior proporção de indivíduos pretos e pardos, em situação de rua e provenientes da CAU, sugere a capacidade das equipes de rua em acessar e encaminhar alguns grupos de maior vulnerabilidade, que têm menor acesso pela busca espontânea. Pesquisas internacionais encontraram resultados semelhantes, na qual equipes de abordagem de rua são capazes de encaminhar perfis de maior vulnerabilidade .
Esse achado positivo das equipes de abordagem permite reflexões sobre as diversas barreiras de acesso que pessoas em situação de rua ainda enfrentam ao buscar espontaneamente um serviço de saúde. Essas barreiras variam conforme as diferenças socioculturais e a organização do sistema de saúde . Um estudo realizado no centro de São Paulo, por exemplo, identificou que PSR relatam o preconceito e a burocracia nos serviços como os principais obstáculos ao tratamento .
A população que frequenta a CAU de São Paulo (Cracolândia) possuía a seguinte distribuição de gênero em 2021: 73,8% de homens cisgênero, 22,5% de mulheres cisgênero e 3,7% de pessoas trans . Considerando a CAU da região como a população-alvo do serviço analisado, a baixa proporção de mulheres (5,90%) na amostra desta pesquisa identifica um gap que sugere a existência de barreiras de acesso para as mulheres. Dessa forma, tanto o CnaR quanto a unidade de saúde carecem de sensibilidade às especificidades do público feminino. A população trans teve representatividade na pesquisa dentro do esperado.
A baixa representatividade feminina observada nesta pesquisa reforça a importância de considerar que mulheres constituem um grupo que necessita de estratégias específicas no acesso e no tratamento de uso de substâncias . Mulheres cisgênero, embora utilizem menos substâncias do que homens, enfrentam barreiras específicas relacionadas ao gênero . Não existem pesquisas brasileiras que avaliam especificamente as barreiras enfrentadas por mulheres em situação de rua para acesso a serviços de dependência química. Uma pesquisa norte-americana identifica como barreiras para mulheres usuárias de substâncias em situação de rua a depressão, o custo e a dificuldade de acesso a serviços . É importante que se realizem pesquisas e que se aprofunde o entendimento dos processos de trabalho que podem estar diminuindo o acesso das mulheres ao tratamento.
Adicionalmente, o padrão de consumo de substâncias diferiu entre os grupos. Os pacientes encaminhados pelo CnaR apresentaram significância estatística para maior prevalência de uso de crack e maconha e menor de canabinoide sintético. Esses dados estão provavelmente relacionados aos diferentes padrões de circulação de substâncias entre diferentes grupos; pacientes da cena aberta da “Cracolândia”, conforme dados do LECUCA, apresentam predomínio do uso de crack dentre as substâncias ilícitas . No entanto, o menor registro de uso de canabinoides sintéticos nesse grupo também aponta para a necessidade de maiores investigações sobre os contextos e perfis associados ao consumo dessas substâncias, cuja composição variável e efeitos imprevisíveis impõem desafios adicionais para a rede de cuidado.
Este estudo apresenta limitações que impactam a interpretação e a generalização dos resultados. É preciso considerar as especificidades do estudo e do território. Não foram avaliados todos os encaminhamentos para tratamento pelo CnaR, mas apenas os encaminhamentos a uma unidade específica. Encaminhamentos realizados para outros serviços não foram avaliados neste estudo. Além disso, o centro de São Paulo é um território com uma característica muito particular: abriga a maior cena aberta de uso do Brasil .
Outra limitação deve-se ao viés de seleção em função das especificidades da equipe do território. Dessa forma, seus resultados não podem ser generalizados para a atuação geral do CnaR, mas podem indicar aspectos importantes referentes a um grupo populacional de extrema vulnerabilidade: pessoas que fazem uso sistemático de substâncias nas ruas. Uma importante limitação é a exclusão de casos que não conseguiram completar a entrevista por serem potencialmente graves. Embora o questionário tenha sido adaptado para essa população, ainda há potencial para viés de resposta, o que pode afetar a confiabilidade dos resultados.
Além disso, as análises apresentadas são de natureza descritiva. A ausência de análises multivariadas para controle de potenciais fatores de confusão limita as conclusões. Estudos futuros poderão se apoiar nos achados do presente estudo para desenvolver análises estatísticas mais sofisticadas, capazes de oferecer uma compreensão mais aprofundada das relações observadas.
Garantir o acesso é fundamental no tratamento de transtornos por uso de substâncias em grupos de alta vulnerabilidade. Para isso, é necessária uma rede de serviços que não apenas tenha acessibilidade inicial, mas também seja capaz de manter os pacientes no tratamento. Não basta dispor de serviços em quantidade adequada; a rede deve ser convidativa, considerando os diferentes perfis dos pacientes. Pode-se concluir que o CnaR obteve resultados mistos em sua missão de aumentar o acesso. Ele conseguiu superar barreiras entre minorias raciais e Pessoas em Situação de Rua (PSR), mas não conseguiu vencer as barreiras de gênero.
Dessa forma, esta pesquisa reforça a importância das equipes de abordagem no encaminhamento de pacientes vulneráveis. Ao mesmo tempo, identifica-se a necessidade de melhorar sua sensibilidade a minorias de gênero. A sugestão dos autores é investigar a existência de barreiras específicas ou violências sofridas por esse grupo no território, além de buscar acolhimentos especializados e implementar medidas de educação continuada sobre as particularidades de mulheres e pessoas trans.
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