Artigo de Atualização

Luto perinatal e o impacto na saúde mental parental: uma revisão narrativa

Perinatal grief and the impact on parental mental health: a narrative review

El duelo perinatal y el impacto en la salud mental de los padres: una revisión narrativa

1. Maria Marta Neves de Oliveira Freire
e-mail orcid Lattes

2. Jerônimo Mendes-Ribeiro
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3. Igor Emanuel Vasconcelos e Martins Gomes
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4. Sarah Cristina Zanghellini Rückl
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5. Maria Angélica Antunes Nunes
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6. Christiane Carvalho Ribeiro
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7. Antônio Geraldo da Silva
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8. Joel Rennó Júnior
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Filiação dos autores:

1 [Médica psiquiatra, membro da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria, Associação Brasileira de Psiquiatria, ABP, Rio de Janeiro, RJ, Brasil]

2 [Médico psiquiatra, vice coordenador da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria, Associação Brasileira de Psiquiatria, ABP, Rio de Janeiro, RJ, Brasil]

3 [Médico psiquiatra, membro da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria, I Psi Saúde Mental, Fortaleza, CE, Brasil]

4 [Médica psiquiatra, membro da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria, Universidade Federal do Paraná, UFPR, Curitiba, PR, Brasil]

5 [Médica psiquiatra, membro da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil]

6 [Médica psiquiatra, membro da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil]

7 [Médico psiquiatra, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, ABP, Rio de Janeiro, RJ, Brasil]

8 [Coordenador da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria, ABP, Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, SP, Brasil]

Editor-chefe responsável pelo artigo: Leandro Fernandes Malloy-Diniz

Contribuição dos autores segundo a Taxonomia CRediT: Freire MMNO [1,2,3,5,6,7,12,13,14], Mendes-Ribeiro J [7,10,12,13,14], Gomes IEVM, Rückl SCZ, Nunes MAA, Ribeiro CC, Silva AG, Rennó Júnior J [5,6,12,13,14]

Conflito de interesses: declaram não haver

Fonte de financiamento: declaram não haver

Parecer CEP: não se aplica

Recebido em: 29/09/2024 | Aprovado em: 09/10/2024 | Publicado em: 13/11/2024

Como citar: Freire MMNO, Mendes-Ribeiro J, Gomes IEVM, Rückl SCZ, Nunes MAA, Ribeiro CC, Silva AG, Rennó Júnior J. Luto perinatal e o impacto na saúde mental parental: uma revisão narrativa. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024;14:1-21. https://doi.org/10.25118/2763-9037.2024.v14.1350

Resumo

Introdução: A perda de um filho é uma experiência devastadora, principalmente no período perinatal, com especificidades que a tornam única. Há um importante impacto financeiro no sistema de saúde, com aumento do risco de surgimento de luto complicado e transtornos mentais graves, incluindo tentativas de autoextermínio. Apesar dos avanços na compreensão do enlutamento perinatal, os pais relatam se sentirem silenciados e estigmatizados no processo. Método: Revisão narrativa sobre luto perinatal e seu impacto na saúde mental dos pais, a partir de busca dos principais estudos nas plataformas PubMed, MEDLINE, Embase e Cochrane com os descritores “perinatal grief”, “perinatal loss”, “miscarriage”, "stillbirth'', “TOPFA”, “neonatal death” e “anxiety”, ”depression” ou “PTSD”. Resultados: O luto perinatal é privado de direitos sociais, com ausência de suporte do parceiro e da rede de apoio social como principais fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos mentais. Possui como características principais a perda do próprio senso de identidade, do papel parental e do senso de ser um ente feminino reprodutor. Apresenta sentimentos e pensamentos ruminativos disfuncionais relacionados a culpa e autopiedade, medo, decepção, raiva, fracasso e de inveja de outras mulheres poderem gerar um filho, além da percepção de ter sido traída pelo seu próprio corpo. A prevalência de transtornos mentais varia amplamente na literatura entre 8.6% e 49%, sendo os principais: depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático. Conclusão: O luto perinatal representa uma experiência devastadora e única, com impactos significativos na saúde mental dos pais. A falta de suporte social, a perda de identidade e os riscos de transtornos mentais ressaltam a necessidade urgente de uma abordagem mais capacitada por parte dos profissionais de saúde mental. É fundamental que haja um acolhimento e tratamento adequados, visando mitigar os impactos psicossociais e econômicos desse processo desafiador para essas famílias.

Palavras-chave: natimorto, luto perinatal, perda perinatal.

Abstract

Introduction: The loss of a child is a devastating experience, especially in the perinatal period, with specificities that make it unique. There is a significant financial impact on the healthcare system, with an increased risk of complicated grief and severe mental disorders, including suicidal attempts. Despite advances in understanding perinatal grief, parents report feeling silenced and stigmatized in the process. Method: A narrative review on perinatal grief and its impact on parents' mental health, based on searches of key studies on PubMed, MEDLINE, Embase and Cochrane using descriptors such as "perinatal grief," "perinatal loss," "miscarriage," "stillbirth," "TOPFA," "neonatal death," and "anxiety," "depression," or "PTSD". Results: Perinatal grief is deprived of social rights, with the absence of partner support and social support networks as major risk factors for developing mental disorders. Key characteristics include the loss of one's sense of identity, parental role, and sense of being a female reproductive entity. It features dysfunctional ruminative thoughts and feelings related to guilt and self-pity, fear, disappointment, anger, failure, envy of other women who can have children, and the perception of having been betrayed by one's own body. The prevalence of mental disorders in the literature varies widely from 8.6% to 49%, with the main disorders being depression, anxiety, and post-traumatic stress disorder (PTSD). Conclusion: Perinatal grief represents a devastating and unique experience, with significant impacts on parents' mental health. The lack of social support, loss of identity, and risks of mental disorders highlight the urgent need for a more equipped approach by mental health professionals. It is essential to provide adequate support and treatment to mitigate the psychosocial and economic impacts of this challenging process for these families.

Keywords: stillbirth, perinatal bereavement, perinatal loss.

Resumen

Introducción: La pérdida de un hijo es una experiencia devastadora, especialmente en el período perinatal, con especificidades que la hacen única. Hay un impacto financiero significativo en el sistema de salud, con un aumento en el riesgo de duelo complicado y trastornos mentales graves, incluyendo intentos de suicidio. A pesar de los avances en la comprensión del duelo perinatal, los padres informan sentirse silenciados y estigmatizados en el proceso. Método: Revisión narrativa sobre el duelo perinatal y su impacto en la salud mental de los padres, basada en la búsqueda de los principales estudios en las plataformas PubMed, MEDLINE, Embase y Cochrane con los descriptores "perinatal grief", "perinatal loss", "miscarriage", "stillbirth", "TOPFA", "neonatal death" y "anxiety", "depression" o "PTSD". Resultados: El duelo perinatal está privado de derechos sociales, con la ausencia de apoyo por parte del compañero y de la red de apoyo social como principales factores de riesgo para el desarrollo de trastornos mentales. Sus características principales incluyen la pérdida del propio sentido de identidad, del rol parental y del sentido de ser un ente femenino reproductor. Presenta pensamientos y sentimientos ruminativos disfuncionales relacionados con la culpa y la autocompasión, miedo, decepción, ira, fracaso y envidia de otras mujeres que pueden tener hijos, además de la percepción de haber sido traicionada por su propio cuerpo. La prevalencia de trastornos mentales varía ampliamente en la literatura entre el 8.6% y el 49%, siendo los principales: depresión, ansiedad y trastorno de estrés postraumático (TEPT). Conclusión: El duelo perinatal representa una experiencia devastadora y única, con impactos significativos en la salud mental de los padres. La falta de apoyo social, la pérdida de identidad y los riesgos de trastornos mentales subrayan la necesidad urgente de un enfoque más capacitado por parte de los profesionales de salud mental. Es fundamental proporcionar un apoyo y tratamiento adecuados para mitigar los impactos psicosociales y económicos de este proceso desafiante para estas familias.

Palabras clave: muerte fetal, duelo perinatal, pérdida perinatal.

Introdução

A perda de um filho é uma experiência de vida devastadora, que por vezes pode desencadear um luto complicado, com o risco de afetar negativamente o bem-estar físico e psicológico . Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a natimortalidade afeta, por ano, cerca de 2,6 milhões de famílias, sendo considerada um problema de saúde pública , com custos tangíveis e intangíveis para pais e serviços de saúde . Em 2016, a taxa de natimortalidade foi de 6:1.000 nascidos vivos nos Estados Unidos (EUA), enquanto variou em mais de 40:1000 nascimentos totais na Nigéria, Etiópia e Paquistão . Embora subnotificada, 98% dos natimortos ocorrem em países de baixa e média renda e 67% em regiões rurais . Apesar das características únicas e do impacto no custo econômico dos sistemas de saúde, o luto perinatal decorrente da natimortalidade ainda não é reconhecido como um problema de saúde pública .

A perda perinatal é definida como a morte de um feto ou recém-nascido durante o período perinatal, que compreende desde a 22ª semana de gestação até o 7º dia de vida . De acordo com a definição da OMS, a perda perinatal pode ser subdividida em :

A partir da década de 70, pesquisas baseadas na teoria sobre o apego mãe-bebê ampliaram a compreensão sobre o vínculo materno e as implicações das perdas gestacionais e neonatais . O processo de enlutamento parental foi reconhecido e novos desafios na compreensão desse processo surgiram a partir da década de 1990, em face aos avanços tecnológicos no diagnóstico pré-natal de malformações letais e a possibilidade de se realizar a antecipação terapêutica do parto ou o acompanhamento dessa gestação por equipe de cuidados paliativos perinatais . Entretanto, apesar do gradual reconhecimento do impacto do luto perinatal na saúde mental dos pais, persistem lacunas significativas tanto no conhecimento quanto na prática clínica. A eficácia das estratégias de manejo ainda é comprometida por uma compreensão inadequada e uma abordagem fragmentada, o que destaca a necessidade urgente de avanços no reconhecimento e na implementação de cuidados mais efetivos e compassivos nesta área crítica da saúde materno-infantil, especialmente em países de baixa renda .

Muitos pais ainda relatam se sentirem estigmatizados e incompreendidos durante esse processo. Um estudo recente encontrou que 80% das mães enlutadas se sentiram discriminadas em relação à sua perda, tanto no ambiente de trabalho quanto por profissionais de saúde .

É essencial que os psiquiatras estejam preparados para acolher e normalizar um amplo espectro de emoções expressas pelos pacientes , assim como distinguir o luto normativo de um luto complicado e estabelecerem um correto diagnóstico diferencial de outros transtornos mentais .

Método

Esta revisão procura fazer uma atualização sobre o luto perinatal e seu impacto na saúde mental parental. Os artigos consultados para elaboração deste texto foram selecionados a partir de busca dos principais estudos disponíveis nas plataformas PubMed, MEDLINE, Embase e Cochrane utilizando e cruzando os seguintes descritores “perinatal grief” ou “perinatal loss”, “miscarriage”, "stillbirth'', “TOPFA”, “neonatal death” e “anxiety” ou ”depression” ou “PTSD”, publicados entre 2011 e 2023. Livros, teses e outros artigos considerados relevantes citados no material consultado também foram incluídos

Características do luto perinatal

O luto perinatal é descrito como um evento único e complexo. De forma geral, denomina-se luto uma reação ao rompimento irreversível de um vínculo significativo . Sua vivência associa-se com a forma de relacionamento com a pessoa falecida e com as circunstâncias que a levaram à morte , com intenso sofrimento no processo de aceitação e adaptação à nova realidade . O processo só finaliza quando existe “a presença da pessoa perdida internamente em paz, e há espaço disponível para outras relações” .

Apesar de ser uma resposta normal e esperada a perdas tangíveis e intangíveis , alterações temporárias no funcionamento emocional, espiritual e social são comuns . Assim, no luto perinatal, tais sintomas tendem a diminuir com o tempo, alcançando um pico por volta do sexto mês após a perda e, em geral, com redução gradual em até 2 anos, embora na literatura dados sobre a sua duração possam variar entre 5-12 anos .

O luto perinatal, portanto, não se vivencia como outras perdas, deixando uma marca existencial nos enlutados conforme descrito na Tabela 1 . Do ponto de vista psicanalítico, ele possui especificidades relacionadas a perda de um ideal sonhado, a um breve e intenso tempo que os pais tiveram para conhecer e interagir de forma indireta (por imagens) ou por um breve contato com seu filho após o nascimento .

As reações incluem o sentimento de perda da identidade e do papel parental, além do sentimento de incapacidade de produzir vida . Visto que o óbito intrauterino ou ao nascimento inverte a ordem natural da vida, há uma quebra na visão do mundo assumida . Ela desafia, portanto, três crenças centrais primárias relacionadas à benevolência, significado do mundo e valor do eu .

Associado a esses aspectos, essa dor é comumente incompreendida por terceiros . Por sua natureza, essa perda é percebida como “invisível” pela comunidade, especialmente se a criança morreu antes ou durante o nascimento . Essa invisibilidade acontece porque família ou amigos ainda não a consideravam “real”, tornando-o um luto não reconhecido e privando os pais da vivência social dessa perda .

Além dessa ausência de reconhecimento cultural, Callister citado por Davoudian, Gibbins e Cirino , reconheceu diferenças significativas nas reações emocionais entre mães e pais que vivenciam esse luto, com as mães tendo reações emocionalmente mais intensas e duradouras que os pais . Côté-Arsenault e Denney-Koelsch acrescentam que, as mães relatam mais frequentemente uma perda do próprio senso de identidade, do papel parental, do senso de ser um ente feminino reprodutor e da sensação de segurança no mundo .

Revisões sistemáticas recentes demonstram uma maior associação de relatos de sentimentos e pensamentos disfuncionais relacionados a culpa e autopiedade, medo, decepção, raiva, fracasso, privação de direitos e de inveja de outras mulheres poderem gerar um filho, além de uma percepção de ter sido traída pelo seu próprio corpo . Segundo análise qualitativa dos dados obtidos, a percepção de que seu corpo tenha falhado com elas pode estar associada adicionalmente a uma relação disfuncional com sua autoimagem corporal. Nesse contexto, algumas mulheres relataram permanecerem acima do peso para se manterem conectadas ao bebê. Outras associam a traição de seu corpo a sua perda, evoluindo com sintomas dolorosos, perda do prazer e redução da atividade sexual .

Por outro lado, três revisões sistemáticas mostram que assim como a mãe, os pais também desenvolvem vínculos afetivos com o feto durante o curso da gestação . Essas relações são cultivadas pela ideia de que o nascituro já é parte da família e conhecido por ambos os pais . No entanto, durante o período gestacional, na maioria dos contextos, o cuidado é focado no papel materno e o pai é invisível para seu meio social assim como para os profissionais de saúde . No momento da perda, os homens enfrentam desafios distintos no processo de enlutamento . Os pais descrevem a necessidade de responder às expectativas de apoiar suas parceiras e a falta de reconhecimento social pelo seu luto e suas necessidades subsequentes . A atribuição de dar suporte à companheira limita a expressão de seus sentimentos . Dessa forma, raiva, culpa e sintomas ansiosos e depressivos são as principais manifestações emocionais desses pais associados a sentimento de ambiguidade em relação ao status de pai , percepção de perda do papel de protetor da família com sentimento de impotência associado .

Os homens vivenciam, portanto, seu luto de uma forma privada e independente, com uma tendência geral de alterar o seu padrão de atividades como principal estratégia de enfrentamento (modelo instrumental do luto), com dificuldade de acessar serviços de saúde . Por isso, tendem a apresentar um isolamento social terapêutico, aumento ou redução em atividades religiosas ou sexuais, maior envolvimento com atividades esportivas, trabalho e redes sociais, complementação de tarefas domésticas (carpintaria, pintura ou escrita) e aumento do uso de substâncias psicoativas (SPA) [Tabela 1].

Fatores de risco e de proteção para evolução do luto perinatal

Os efeitos da perda perinatal estão associados a risco aumentado de transtornos depressivos e de ansiedade, pensamentos ruminativos, ideação suicida, culpa e vergonha disfuncionais, aumento do uso de SPA, conflito conjugal e estresse Pós-traumático (TEPT) .

Embora, segundo estudos de revisão sistemática, os maiores preditores para evolução de um luto complicado e de possíveis transtornos mentais são a ausência de suporte do parceiro e a rede de apoio social fragilizada, outros fatores de risco também são identificados [ Tabela 2 ] .

Em contrapartida, revisões sistemáticas recentes destacam fatores protetores contra o luto complicado e o surgimento de transtornos mentais: apoio social adequado, nível de satisfação marital, suporte na comunidade religiosa, capacidade de investir emocionalmente em objetivos de vida fora da parentalidade, acompanhamento por um médico da área reprodutiva após a perda, participação em grupos de psicoterapia de suporte ao luto, esclarecimento sobre a causa da morte e psicoeducação sobre o processo de enlutamento .

Sintomas Ansiosos, depressivos e de TETP no luto perinatal

Há evidências crescentes em relação ao desenvolvimento de transtornos mentais a partir do luto perinatal e sua prevalência varia amplamente na literatura entre 8.6% e 49%, devido à heterogeneidade dos estudos e ausência de controle de fatores confundidores .

Depressão

Diversos estudos comparativos demonstram uma associação entre a perda perinatal recorrente e aumento dos níveis de depressão . A coexistência de uma depressão com o processo de luto, aumenta os riscos de intercorrências obstétricas em uma nova gestação e de suicídio . Assim, é necessário investigar o curso dos sintomas da paciente, como alterações de humor, padrões de pensamentos e de visão distorcida de si mesma, presença de ideação suicida e de desesperança . Um estudo controlado para antecedentes de transtorno mental, descobriu que 25% das pacientes com perda perinatal preenchiam critérios diagnósticos para depressão 3 meses após aborto espontâneo .

Uma revisão sistemática conduzida por Westby et al. encontrou uma associação entre o luto perinatal e sintomas depressivos, com estudos longitudinais indicando um maior risco de surgimento de transtorno depressivo nos primeiros meses após o nascimento/perda, com sintomas persistentes em comparação ao grupo controle . Em relação ao impacto da perda perinatal em gestações posteriores, revisão sistemática realizada por Hunter, Tussis e MacBeth encontrou baixa associação entre o histórico de perda perinatal e o aumento do risco de depressão maior na gestação subsequente (d=0,22, IC=95%, p<0,0001) .

Ansiedade

Cerca de 28% das mulheres preenchem critérios diagnósticos para algum tipo de transtorno de ansiedade nos meses seguintes à perda . Em recente revisão sistemática conduzida por Herbert et al., a morte neonatal teve uma maior associação à transtornos de ansiedade, seguida pelas perdas por fetos com condições limitantes à vida (CLV), natimorto e aborto espontâneo . Outra revisão realizada por Westby et al. também sugeriu que pais de bebês natimortos experienciaram mais sintomas ansiosos no período pós-parto do que os pais do grupo controle, que ocorreram com maior intensidade logo após a perda e com redução ao longo dos 30 meses subsequentes .

Em relação ao impacto da perda perinatal em gestações posteriores, estudo de coorte conduzido por Mainali et al. com 1.458 grávidas na Escandinávia demonstrou que mulheres com histórico prévio de perda perinatal apresentaram sintomas ansiedade mais graves em comparação ao grupo controle . Achados de uma revisão sistemática conduzida por Hunter, Tussis e MacBeth demonstrou que as mulheres com um histórico de perda perinatal apresentaram níveis de ansiedade maiores do que o grupo controle em gestações subsequentes, com maior impacto dos sintomas ansiosos do que depressivos (d=0,69, IC=95%, p<0,0001) .

TEPT

O Transtorno de Estresse Pós-Traumático desenvolve respostas perturbadoras ao trauma que incluem alterações comportamentais, pensamentos suicidas, revivência de memórias, pesadelos, flashbacks, irritabilidade, evitação social que impactam diretamente na qualidade de vida e na funcionalidade . No contexto da perda perinatal, essas características são agravadas, impactando negativamente no processo de luto .

Em revisão sistemática conduzida por Christiansen, a intensidade dos sintomas de estresse pós-traumático em mulheres com perdas perinatais foram maiores do que naquelas que viveram outros tipos de traumas, em função da natureza traumática do evento . A prevalência do TEPT em mães no período entre 3 a 12 meses após a perda variou entre 7-28% . Embora alguns estudos tenham indicado que os sintomas de TEPT possam diminuir alguns anos após a perda, outros demonstraram que uma minoria de pessoas persiste com sintomas por décadas . Mesmo em mães que engravidam no período entre sete meses e 16 anos após a perda, três estudos encontraram taxas de prevalência de TEPT entre 12,5 a 20% em comparação à incidência geral de TEPT na população geral (5 a 10%) .

A presença de luto perinatal aumenta o risco de TEPT na gestação posterior que, se não tratado, aumenta o risco de complicações obstétricas como depressão materna gestacional, pré-natal inadequado, prematuridade, padrões de comportamento de risco, ganho de peso, dificuldade na amamentação e falta de apego . Pesquisas que acompanharam mulheres que tiveram outro filho demonstraram que 25% a 33% dessas mães apresentaram sintomas de estresse pós-traumático, sendo que 4% a 6% da amostra persistiu com sintomas um ano após o parto .

Manejo do luto perinatal

A presença de falhas metodológicas e heterogeneidade dos estudos sobre manejo do luto perinatal dificulta a criação de diretrizes . Assim, para uma abordagem que envolva um cuidado adequado e individualizado, é fundamental contextualizar e validar as experiências subjetivas de cada indivíduo ou núcleo familiar, o que requer um conhecimento abrangente das diversas teorias de luto .

Segundo Parkes, o luto pode ser um trauma psicológico importante , com acontecimentos de mudança de vida que trazem maior demanda de adaptação aqueles que:

Esses critérios definem as transições psicossociais desencadeadas pelo luto que comportam disfunções simultâneas em relação às áreas de funcionamento acima descritas . Assim, consideram-se três demandas principais a serem abordadas no manejo do luto perinatal:

  1. suporte emocional;
  2. proteção durante o período de desamparo;
  3. assistência para construir novos modelos de mundo adequados à situação emergente.

A vivência do pesar associado às transições psicossociais exerce grande peso, o que torna a experiência do luto exclusiva , principalmente no contexto perinatal em que o mundo presumido é perdido abruptamente. Todas as crenças de quem vivencia essa situação são questionadas, com a perda dos sonhos e projetos relacionados àquele bebê [Figura 1].

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Figura 1. Teoria das transições psicossociais de Parkes Fonte: Criado por Freire e Freitas a partir do conceito teórico (2022).

Por ser um evento dinâmico, Stroebe e Schut propuseram o modelo dual de enfrentamento ao luto descrevendo esse processo contínuo, ativo e auto regulatório . Ele oscila entre uma “orientação para perda” (emocional) e orientação para a “restauração” com estratégias de enfrentamento para a resolução dos problemas . Através dele, o indivíduo enlutado às vezes enfrenta, outra vezes evita as diferentes tarefas do luto [Figura 2].

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Figura 1. Teoria das transições psicossociais de Parkes Fonte: Criado por Freire e Freitas a partir do conceito teórico (2022).

Apesar da melhor compreensão do processo de elaboração do luto perinatal, os estudos na literatura ainda são limitados no que tange os protocolos de tratamentos psicoterápicos . Como resultado, os pesquisadores adaptaram as modalidades existentes para o atendimento a esse perfil, como a terapia cognitivo-comportamental (TCC), terapia interpessoal (TIP), dessensibilização e reprocessamento através do movimento dos olhos (EMDR), prática de mindfulness, grupos de aconselhamento para as mães e terapia da compaixão . Apesar dos resultados ainda limitados sobre a eficácia dessas abordagens , alguns estudos trazem resultados promissores com redução dos sintomas depressivos e de estresse pós-trauma .

Além da ausência de protocolos validados para o acolhimento de tais famílias, Heazell et al. afirma que o sistema de saúde falha com os pais enlutados devido a ausência de serviços empáticos e eficazes . Os homens tendem a expressar insatisfação no suporte por parte dos serviços de saúde devido a linguagem insensível ou terminologia médica confusa, ausência de respostas ou explicações sobre o motivo da morte de seu filho e o não reconhecimento de sua angústia e de seu papel como pai .

Boas práticas a serem consideradas na abordagem inicial de familiares enlutados

Apesar dos dados limitados sobre protocolos, revisões recentes demonstram que atitudes adequadas da equipe de saúde assistente podem auxiliar no processo de elaboração desse luto, com pesquisas qualitativas de satisfação do paciente revelando o desejo paterno de maior empatia dos profissionais com disposição para ouvir, reconhecer, normalizar e validar suas emoções e necessidades .

O uso de uma linguagem acessível para informar os motivos do óbito fetal (utilizando o nome do bebê escolhido pelos pais), encaminhamento para serviços de saúde mental, agendamento de consulta posterior com equipe de gineco obstetrícia e não culpabilizar os pais pela perda são passos fundamentais . Uma abordagem compassiva, com membros devidamente treinados que ofereçam a oportunidade aos pais de vestir seu bebê com captura de memórias em fotografias, filmes e pedaços do cabelo e de se despedirem dele podem contribuir na elaboração do luto e devem ser consideradas pois, para muitos pais, esse é o momento em que experienciam sua parentalidade .

Na alta hospitalar, a psicoeducação sobre o processo de luto no contexto perinatal, assim como orientações sobre as diferenças de gênero na forma de expressar seu enlutamento e encaminhamento para serviços de acolhimento ao luto, podem ajudar na comunicação entre o casal assim como prevenir padrões de enfrentamento desadaptativos como o uso excessivo de álcool, por exemplo .

Nos enlutamentos com suspeita de transtornos mentais coexistentes, o acompanhamento psiquiátrico deverá ser realizado para o monitoramento dos sintomas de diagnóstico diferencial . Escalas auto administradas pelo paciente, como a GAD-7, EPDS, PHQ-9 e PCL-5 podem ser ferramentas valiosas no rastreamento de monitoramento dos sintomas e da resposta às intervenções terapêuticas .

Conclusão

O luto perinatal deixa uma marca existencial nos pais, com características únicas. Tais especificidades aumentam o risco de desenvolvimento de transtornos mentais graves, inclusive em gestações posteriores e exigem do Psiquiatra Clínico conhecimento da complexidade envolvida no cuidado adequado a famílias enlutadas.

Estudos publicados, embora relevantes, ainda carecem de metodologia adequada na elaboração de diretrizes clínicas no cuidado às famílias enlutadas e ainda há poucos estudos sobre as alterações neurobiológicas decorrentes do impacto do luto perinatal na saúde mental parental, principalmente em países de baixa renda. A partir de uma melhor compreensão desses aspectos, haverá a possibilidade de planejamento e a implementação de políticas públicas de saúde, baseadas em evidências, que possibilitem o acesso equitativo e especializado à saúde mental parental, com implementação de assistência a esses núcleos familiares nos serviços gerais de saúde, atuando na prevenção de transtornos mentais graves.

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Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro. 2024